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Para Onde Voam as Feiticeiras | Nasir | Nardjes A.

Críticas dos filmes exibidos no 9º Olhar de Cinema, 1ª edição.

Textos publicados durante a cobertura do 9º Olhar de Cinema

1) Para Onde Voam as Feiticeiras (Dir. Eliane Caffé, Carla Caffé, Beto Amaral)

Sinopse: Para Onde Voam as Feiticeiras acompanha um grupo de performers LGBTQIA+ em intervenções artísticas no centro de São Paulo. Suas ações são disparadoras de debates sobre desigualdades sociais, preconceitos e vidas marginalizadas, permeados pelas lutas dos movimentos negro, indígena, de ocupações urbanas. Com uma forma híbrida em contínua construção, o filme aposta menos na busca por respostas e mais no diálogo coletivo enquanto método e finalidade. Ele extravasa a circunscrição de bandeiras identitárias, permitindo-se contaminar pela centelha incontrolável de vida que vem do gesto de lançar-se às ruas.

Apenas pelo discurso pró-igualdade e dignidade para que a sociedade reconheça seus erros históricos e sua discriminação atemporal e amadureça em direção à justiça social, este exercício narrativo comandado por Eliana e Carla Caffé e Beto Amarelo seria importante para darmos ouvido a vozes sufocadas, através do teatro de rua montado no centro de São Paulo. Entretanto, eu mesmo caí de amores pela forma narrativa do documentário.

Em vez de apenas quebrar regras, o trio de direção estabelece regras cinematográficas coerentes com a trama: a câmera filma não apenas o movimento no centro de São Paulo ou a performance do conjuntos de atores, filma também a câmera de cobertura e os equipamentos de áudio. É uma forma consciente de o trio reconhecer que, enquanto faz cinema, quem é registrado em frente às câmeras vive o preconceito, a exclusão social e a violência inclusive durante as próprias filmagens. A metalinguagem é uma evidência que o trio admite a posição privilegiada de contadores de história e não de sobreviventes desta, além de permitir cenas originais em que membros da equipe participem do conteúdo.

Ciente do papel de facilitador ou, ao menos, de quem aplaude ao fundo, a equipe diretora quebra a quarta parede como o recurso apropriado para que todos os nomes que participam da narrativa tenham a oportunidade de dirigir-se ao espectador, e suplicar por um Brasil mais digno. Fato reforçado com vídeos de arquivo e depoimentos tocantes, integrados à narrativa como retrato desta realidade mais e mais incômoda.

O centro de São Paulo é também o polo correto para que vejamos a confluência de raças, etnias, orientações sexuais e identidades de gênero na metrópole da América Latina, e a reação de quem está de fora deste teatro de rua filmado mas interage mesmo assim, enquanto ajuda a revelar o objeto da narrativa. Quem passa em frente ou se integra com cumplicidade e solidariedade a este, ou assiste à distância, com misto de curiosidade e/ou repúdio, ou atua com violência, verbal ou física, contra a liberdade de expressão de quem não tende a ter voz. Um documentário porta-retrato do Brasil, tanto pela riqueza humana, quanto infelizmente pela maneira com que desperdiçamos esta riqueza por preconceito.

O abismo das alianças, o mundo em catacumbas | Olhar de Cinema #1 –  matéria-prima

2) Nasir (Dir. Arun Karthick)

Sinopse: Em meio a uma rotina dura vivida entre as jornadas para o trabalho como vendedor de tecidos e o cuidado com sua família, incluindo o filho adotivo com deficiências, Nasir não deixa de sonhar com um futuro mais confortável, enquanto escreve cartas de amor para a esposa e declama suas poesias. Só que Nasir (interpretado por Koumarane Valavane) também é um muçulmano, vivendo num país cada vez mais dominado por uma latente intolerância com suas minorias religiosas. O auto-didata Karthick filma com atenção os ritmos da vida cotidiana e a maneira insidiosa como a realidade social pode sufocar as existências humanas.

A poesia cotidiana movimenta a jornada de Nasir, o muçulmano que dá nome ao filme, em uma Índia majoritariamente hindu, a horas de entrar em estágio de convulsão social. A violência, contudo, não é o predicado, apenas o ponto, já que a narrativa é dedicada em mostrar os contornos da rotina do protagonista: sua dedicação familiar, seu comprometimento no trabalho, sua religiosidade, suas dificuldades financeiras no interior do gueto apertado e superpovoado onde mora.

É um trabalho de olhar, não de ação ou conflito. Um olhar detido por mais de um minuto ao personagem enquanto dorme, e o mesmo olhar desferido noutro contexto, mais perto do clímax; um olhar ao toque das mãos em oração e a pequenos detalhes componentes daquele mosaico distante da nossa realidade. Esta sensibilidade narrativa ilustra quem é o protagonista, que escreve poesia à esposa ou a declama a atentos colegas de trabalhos, e pondera também em como, ao destilar tamanho ódio social, terminamos por contaminar aqueles mais propensos a consertar, nem que apenas um remendo, a fábrica que une uns aos outros.

A razão de aspecto estreita revela qual o escopo da vida de Nasir, cuja rotina é determinada não por si mas pela própria sociedade, além de evidenciar como, nem mesmo no cinema, havia como o protagonista fugir do próprio destino. É uma obra singelamente melancólica e doce.

Nasir | Crítica | Olhar de Cinema | Apostila de Cinema

3) Nardjes A. (dir. Karim Aïnouz)

Sinopse: Em março de 2019, o cineasta cearense Karim Aïnouz parte em busca das raízes de sua família paterna para realizar um filme autobiográfico, indo pela primeira vez à Argélia. Chegando lá, inspirado pelo entusiasmo das manifestações contra o governo local, termina “achando” um outro filme. Como nas suas ficções, sua câmera se cola aos movimentos da sua protagonista Nardjes, uma jovem ativista, ao longo das 24 horas ao redor de uma manifestação em pleno Dia Internacional das Mulheres. Ao filmá-la com paixão, o cineasta, exilado em Berlim há alguns anos, deixa implícito um chamado aos compatriotas brasileiros.

Como uma prova cabal da democratização da produção cinematográfica, o documentário filmado através da câmera do celular por Karim Aïnouz é competente em demostrar que um aspirante a direção está a apenas um argumento para sair às ruar e contar suas histórias. Existe aí um nexo de ligação entre o meio escolhido para filmar e a manifestação popular contrária ao quinto mandato do ex-presidente Abdelaziz Bouteflika: ambos miram o inimigo comum, o autoritarismo: o primeiro na seara cinematográfica, monopolizada por quem detém o capital para produzir histórias de cinema, e o último no campo político-social.

Parece haver um ponto de discussão pertinente pela forma adotada pelo documentário, antes de este perder-se no mar de pessoas que inunda as ruas da capital de Algiers, em março do ano passado, e o diretor fascinar-se com a mulher que dá nome ao filme. É ela cujo olhar dirige uma parte da narrativa, enquanto admira quem declama inconformismo a seu lado ou congratula jovens manifestantes.

Não esta dentro do objetivo da narrativa debater o mérito das manifestações, apesar de ser bastante evidente que sejam democráticas por serem pacíficas e enfrentarem a sede pelo poder de Bouteflika, nem mesmo o (in)sucesso desta, contado em letreiros breves e inseridos ao final da narrativa. Karim deseja apenas demostrar a manifestação como uma parte da rotina de Nardjes A. antes de a mulher encontrar-se com amigos no bar e aproveitar o restante de noite que lhe resta para então retornar ao convívio familiar.

Falta à narrativa justificar, em imagens, por que escolher Nardjes A. em vez de qualquer outra pessoa, o que torna esta artista de classe média especial a fim de ser condutora adequada a guiar o espectador através deste período decisivo na história da democracia argelina. E a ausência disto apenas empobrece o documentário.

Olhar de Cinema 2020 | Crítica: “Nardjes A.”

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