Liam Neeson já não era garotão em Busca Implacável (2008), quando aposentou a posição de mestre sábio de A Ameaça Fantasma, As Crônicas de Nárnia ou Batman Begins, para assumir o cargo de astro de ação. Liam chegou a ser objeto de críticas irônicas em Busca Implacável 3 (2014), quando nitidamente não era mais capaz de realizar cenas elementares ao ponto de a montagem precisar retalhar as sequências através de dezenas de cortes… nunca foi tão difícil pular uma grade. Aos 68 anos, o ator e marca deste cinema de ação conforto retorna em Legado Explosivo, em que interpreta Ladrão-Fantasma, apelido dado pela façanha de haver furtado 8 bancos em 6 meses sem ser descoberto pela polícia nem deixar vestígios.
É preciso que o acaso intervenha e Tom conheça Annie (Kate Walsh), para que seja tomado pelo sentimento de honestidade do bom ladrão e decida entregar-se, com a esperança de que, se devolver o dinheiro furtado e cumprir a pena, poderia retornar aos braços da mulher amada. Abarrotada de trotes, a polícia desconfia da veracidade da confissão de Tom, mas envia os policiais John (Jai Courtney) e Ramon (Anthony Ramos), que decidem ficar com o dinheiro furtado para si e livrarem-se de Tom, mas a cadeia de acontecimentos frustrará seus planos gananciosos. Além disso, esquecem que Tom é interpretado por Liam Neeson, e isto já deveria significar alguma coisa no cinema de ação.
A premissa do roteiro de Steve Allrich e Mark Williams (criador de Ozark), que acumula a função de diretor, já é tola dentro do mundo cínico em que vivemos e ainda serve de mola para que a ideologia fílmica privilegie um falso moralismo comandado por Tom, que começou a furtar bancos em vingança de quem se apropriou do fundo de aposentadoria de outros – um crime que nós, brasileiros, conhecemos bem. Todavia, não demora para que Tom culpe a adrenalina pelos furtos subsequentes, mesmo ciente de que o dinheiro roubado poderia ser da aposentadoria de outras pessoas. Mas tudo bem, contanto que Tom continue honesto com Annie e seus sentimentos: “menti sobre o que fiz, mas não sobre o que sinto por você”, afirma com dicção solene e paciente, típica do ator, que não parece ter embaraço de diálogos iguais a este.
Na realidade, a narrativa é dividida entre personagens morais (penitentes ou arrependidos) e o imoral John, que assume o posto de vilão solitário da narrativa e, com isto, enfraquece a menor chance de a ação ser a desculpa de o roteiro se consolidar em um prazer culposo cinematográfico. No mano a mano, não há muita chance para que Jai Courtney rivalize Liam Neeson, sobretudo após sabermos que o ex-ladrão era do exército e, apesar de não ser combatente, era especialista em desarmar explosivos. Com gancho nisto, Legado Explosivo transforma-se em uma narrativa anti-ação, em como o herói prefere assumir o erro para evitar o confronto físico, assim como fazem aqueles que poderiam levar o confronto a ele: Ramon, em crise de consciência desde antes do ponto de não retorno, e Sean (Jeffrey Donovan), que recebe, do divórcio, a cachorrinha da família, um acessório narrativo para não o vermos como um adversário mas um homem justo.
Como consequência, as cenas de luta, os tiroteios e as perseguições de carro são reflexos opacos daqueles elementos que serviriam de concreto ao gênero ação. É um misto de burocracia com falta de criatividade: Liam e Jai trocam socos antes de caírem andares abaixo e carros aceleram nas ruas sem que haja aceleração da adrenalina do espectador. Enquanto erra na ação, a narrativa tenta acertar no romance: um Tom açucarado pelo amor na terceira idade, uma Annie que ignora, rapidamente, a profissão de seu namorado, e ambos relaxados em relação a estarem sendo perseguidos por metade dos policiais de Boston.
A sensação é de desinteresse: de quem escreveu o roteiro que justificaria o retorno de Liam Neeson à ação, de quem narrou os eventos de modo genérico e prosaico, a fim de trocar a tensão da ação por uma lição de moral, de quem está em frente às câmeras e de nós, que testemunhamos um inusual filme de ação que preferia ser de romance.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.