Eu consigo somente imaginar a sensação que deve ser, para um diretor, ter uma liberdade criativa irrestrita para narrar a história que deseja, com o orçamento que precisa, independente de palpites e intervenções da produção e de qualquer dependência de bilheterias para validar seu trabalho. Depois de enriquecer o caixa da Warner com Invocação do Mal 1 e 2 e Aquaman, James Wan ganhou carta branca e orçamento significativo de U$ 40 milhões para realizar um giallo: um subgênero italiano, muito estilizado e violento, que misturava policial, thriller e terror e envolvia a caçada a um assassino em série cuja identidade era conservada em segredo até o clímax. Talvez não seja o filme que a Warner desejava produzir – imagino que quisessem um terror de casa mal assombrada –, mas é o filme que o terror precisava, até para evitar que caísse novamente na zona de conforto de anos anteriores.
Maligno parece estranho porque mistura tudo aquilo com que James Wan já trabalhou, mas numa roupagem inusual para alguém menos acostumado ao cinema de Dario Argento, Lucio Fulci ou Mario Bava. Não é inédito em conteúdo, e basta pesquisar no Google para ver que esta virada do enredo já foi objeto de um clássico do terror; porém, é inédito em forma, e logo percebemos isto quando Madison (Wallis), depois de ser agredida pelo marido e sofrer uma concussão, começa a ter sonhos lúcidos em que testemunha os assassinatos de pessoas desconhecidas, mas relacionadas no passado, cometidos por um estranho sujeito de aparência monstruosa chamado Gabriel.
Com experiência em casas mal assombradas, fantasmas e espíritos, James Wan diverte-se no primeiro ato gestando expectativas para colher surpresas positivas, não decepções. Wan absorve a influência do cinema japonês (O Grito, O Chamado) para caracterizar Gabriel, vivido por Marina Mazepa, uma atriz, dançarina e contorcionista responsável por movimentos que juramos serem impossíveis até assisti-la em cena. Eu permaneci num misto de incredulidade e deslumbramento enquanto assistia a Gabriel descer as escadas de um edifício ou enfrentar uma dúzia de policiais (você entenderá o motivo), e isto só facilitou meu envolvimento em um trama fantástica que envolve biologia e sobrenatural.
Enquanto isto, Wan brinca com o mistério em torno da identidade do assassino, escondendo-a onde menos esperamos. Wan está tão seguro deste esconderijo a olhos visto que nem receia utilizar a mesma canção de um filme popular, cuja citação no texto seria um imenso estraga-prazer. Faz isto porque, apesar de a revelação ser a cereja dentro de um filme bastante eficiente, não é a muleta que precisa para funcionar como tantos mais. Maligno tem a envergadura de um filme confiante na capacidade de assustar, entreter e discorrer a respeito do impacto da violência doméstica para a protagonista, com o estilo característico do diretor: Wan planeja cada sequência para que a câmera mova-se com liberdade, a princípio sugerindo o que não queríamos enxergar, até chamar a atenção do espectador ao fato de que o suspense está associado com suas próprias expectativas criadas em busca da surpresa.
Se diretores menos habilidosos se apoiam no susto a fim de salvar terrores medíocres, Wan aposta no poder do suspense. É como se o espectador chegasse a implorar a Wan, “assuste-me porque não quero aguento tamanha ansiedade”, e o diretor retribuísse com tensão e catarse na forma de uma violência gráfica, auxiliado com a montagem precisa de Kirk Morri. Para Wan, o que importa é o momento antes do susto, não este propriamente dito, o que transporta o espectador para dentro do olhar de Madison quando desperta sabe-se lá em que casa ou apartamento apenas para assistir, impotente, a crimes cruéis. E Annabelle Wallis é uma ‘rainha do grito’ bastante digna, ao lado de um elenco que não destoa da proposta do gênero. Assim, a canastrice do detetive Kekoa Shaw (Young) é resultado do desejo de Wan em se manter fiel ao giallo, não da pretensa falta de talento do ator; o mesmo se aplica a Sydney (Hasson), que tenta ajudar a irmã a partir de uma investigação particular.
Quem também se diverte dentro da proposta da narrativa é o diretor de fotografia Michael Burgess (de A Maldição da Chorona, Annabelle 3 e Invocação do Mal 3), valendo-se do filtro azulado para as tomadas noturnas ou do vermelho saturadíssimo a fim de se apropriar, de modo propositadamente falso, dos contrastes característicos dos clássicos que homenageia do gênero dos anos 60/70 sem deixar que a homenagem por si só seja o que dite a identidade visual do filme.
Assim, Maligno é um sopro de vida neste subgênero adormecido. Sua forma e conteúdo são característicos do terror e thriller que o próprio giallo inspirou e que agora servem para realimentá-lo e apresentá-lo à geração de hoje. Resta a pergunta: o filme é apenas uma homenagem isolada ou o início de uma tendência, ainda mais considerada a inspiração que James Wan tem para uma geração de diretores? Espero que a resposta correta seja a segunda.
Maligno está em exibição nos cinemas e, em breve, será lançado na HBO Max.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.