Vencedor do Urso de Ouro em exibição na 45ª Mostra em São Paulo
O vencedor do Urso de Ouro, o principal prêmio do Festival de Berlim, inicia com o vídeo íntimo, explícito, que estabelece o ponto de partida da jornada de provação da protagonista Emi e também do discurso do cineasta romeno Radu Jude, o de que os problemas sociais, históricos ou contemporâneos, podem ser analisados a partir da forma como a sociedade reage ao que dois adultos fazem consensualmente detrás de quatro paredes. A ideia é de que a reação do grupo de pais em razão da divulgação do vídeo íntimo de Emi, a professora de seus filhos, seja o espelho para refletir os horrores que paralisariam a sociedade hipócrita e rápida em julgar o outro mas não a si mesma.
Esta empreitada poderia desaguar em uma história dramática de alerta, talvez até seja em certo grau, mas Radu Jude opta por caminhar a via da comédia satírica e crítica para expor a nudez da sociedade de que participamos. Faz isto a partir da estrutura subdividida em três capítulos de proposta e linguagem particulares e um epílogo. No primeiro capítulo, Má Sorte no Sexo ou Pornô Amador acompanha Emi no centro de Bucareste a caminho do colégio onde participará da reunião que decidirá qual o seu futuro profissional. Com a câmera à distância, Radu observa Emi; às vezes, até se aproxima para escutar as conversas antes de perdê-la de vista no pano de fundo capitalista da ex-sociedade comunista do período de Nicolae Ceauşescu.
No capítulo seguinte, o mais original deles, o diretor abandona temporariamente a trajetória de Emi para comentar fatos e anedotas e proporcionar o atrito que possibilita a reflexão crítica e irônica num país de identidade dividida, que flertava com o fascismo de Hitler e o comunismo de Stalin na mesma proporção. De forma caótica, ainda assim estruturada, a direção atira passagens que, independentemente umas das outras, têm o poder de provocar indignação ou inconformismo. Ao serem articuladas ao lado uma das outras, revela a gênese das questões sociais, que será melhor aprofundada no terceiro capítulo: o “julgamento” de Emi, ou melhor, a inquisição.
A partir de um ‘eu’ contra ‘eles’, os pais (e avós) dos alunos que, a esta altura, já assistiram ao vídeo da professora, Radu coloca o espectador diante de um quadro em que um dos pais só falta babar sobre o vídeo íntimo, exposto por outra mulher, enquanto Emi quebra a quarta parede, como se desafiasse a escolher quem quer ser. É pertinente pois, ao iniciar a narrativa com uma cena de sexo explícito, Radu já se filia à Emi: estaríamos julgando seu filme pela cena inicial, não pelo conteúdo que esta apresenta ou discussão que proporciona, igual os pais hipocritamente julgam a índole de Emi, não a sua pedagogia, pelo infortúnio de ter um momento privado divulgado ao público? Mesmo se Emi houvesse divulgado o vídeo, esta exposição estaria dentro de sua esfera particular. Quem merece ser repreendido são os pais que ignoram o fato de seus filhos terem acesso a conteúdos acessíveis a maiores de idade e que morrem de medo de educá-los sexualmente.
Reforça esta crítica o sem número de fatos sociais que Emi testemunha diante da sociedade desigual e de consumo: pessoas ricas que param os carros nas calçadas ou na rampa de acessibilidade pública ou a figura ausente do marido, que filmou o vídeo íntimo, e é apagado da narrativa, pois a consequência recai só sobre a mulher. Além disto, Radu ilustra como a nudez é parte do urbanismo da cidade, nas estátuas, nos manequins ou na publicidade, a olhos vistos, inclusive as mesmas crianças que pais tentam proteger enquanto se escondem detrás de suas perversões, iniquidades e corrupções, a exemplo de colonizadores abusando sexualmente da população aborígene nativa. Nem mesmo Emi escapa à crítica da narrativa em certo momento, quando também conhecemos suas contradições.
Ao criticar a sociedade romena ainda mais em tempos de Covid-19, um reflexo da sociedade brasileira é oportuno destacar, Radu critica todos nós e a si mesmo, pois sua virtude narrativa é desafiada, e posso antecipar a crítica ao diretor ao subordinar a atriz Katia Pascariu e seu companheiro de elenco à cena introdutória. Entretanto, como boa arte que é, Má Sorte no Sexo ou Pornô Amador provoca, em vez de responder. Assim, o hilário epílogo termina por ser uma poderosa conclusão. Se Radu Jude diagnostica os males da sociedade na hipocrisia sexual e no julgamento da vida privada, e ilustra as consequências de forma ácida, também reconhece com humildade não saber consertar algo profundamente quebrado.
Desconfio que nem o Super-Homem ou a Mulher-Maravilha conseguiriam.
Má Sorte no Sexo ou Pornô Amador está disponível na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.