Após ser abortado pelo presidente, a série de curtas documentais virou um longa
15 de Agosto de 2019. O presidente Jair Bolsonaro afirma que a Agência Nacional de Cinema não autorizará a liberação de verbas para produções LGBT que tentem captar recursos no mercado. Seu argumento? Estaria “jogando dinheiro fora” e não haveria “tem cabimento fazer um filme com esse tema”. Assim, Transversais estaria “abortado”, certo? Errado.
O que era para ser uma série documental em cinco episódios baseada no curta-metragem Aqueles Dois, transformou-se em um longa-metragem que consolida as histórias no estado do Ceará, através da produtora de Allan Deberton (de Pacarrete). Prefiro imaginar que Transversais nasceu assim, adotando ainda a forma característica de um documentário de Eduardo Coutinho.
A partir do princípio da escuta atenta e paciente, o diretor Émerson Maranhão documenta a história de vida, as dificuldades em ser transexual no âmbito familiar, social e do mercado de trabalho, e a alegria da afirmação de ser quem se é. Com naturalidade, cada relato é vivenciado de forma serena e despida de sentimentalismo, com exceção da trilha sonora timidamente inserida neste ou naquele momento.
Kaio recorda o momento em que precisou usar vestido na escola e como isto serviu de chantagem emocional para que a mãe adquirisse sua primeira roupa masculina. Já Érikah critica não o desrespeito dos alunos adolescentes, que entende apenas reproduzirem o meio preconceituoso onde estão inseridos, mas o preconceito dos colegas professores. Estas histórias consistem na matéria-prima do documentário, cuja função é remover o véu da discriminação através da empatia.
As histórias ganham vida diante do cenário transfóbico em que uma pessoa transexual ou travesti é morta a cada dois dias. Ou do contexto social em que a disforia de gênero era tratada como uma parafilia, a exemplo da pedofilia ou necrofilia, e o estigma que isto provoca na autoaceitação. Ou mesmo da questão do preconceito religioso, com defesa ao candomblé por seu princípio inclusivo, não excludente.
A partir daí, Émerson Maranhão adota uma forma conservadora para o documentário ao arrepio da temática progressista. Não demora para que, fora de contexto, um sacerdote do candomblé comece a repetir e propagandear o que já havia sido mencionado antes e que terceiros, que não as pessoas trans tema do documentário nem seus familiares diretos, comecem a testemunhar favoravelmente, como se as pessoas trans fossem réus e precisassem de voto de confiança.
Não precisariam, pois as histórias de professores, servidores públicos, paramédicos e tantos outros por esses representados, falam por si e são um arcabouço mais do que bastante para a pretensão do documentário em aproximar o espectador de pessoas que, porventura, pudesse discriminar caso as conhecesse.
Transversais está disponível na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.