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Com este Call Jane, a roteirista indicada ao Oscar por Carol (2015), Phyllis Nagy, retorna à direção de longas-metragens 17 anos depois de Mrs. Harris (2005), um telefilme estrelado por Ben Kingsley e Annette Bening. A partir do roteiro de Hayley Schore e Roshan Sethi, a diretora adapta a história real de um coletivo de mulheres que, na década de 60, após a recusa das juntas médicas para realização de abortos, toma as medidas necessárias, mesmo que clandestinamente, para ajudar as mães a interromper gravidezes que coloquem a vida da gestante em risco, ou sejam fruto de estupro ou apenas indesejadas. A existência deste grupo feminino pré-data a ação Roe vs. Wade, cujo resultado descriminalizou o aborto nos Estados Unidos, e o roteiro coloca a fictícia Joy (Banks) como a peça-chave para entender o funcionamento do Jane Collective.

Uma dona de casa exemplar, mãe de uma filha de 15 anos, Joy tem uma gravidez de risco, com chances concretas de custar-lhe a vida. Mas, no mundo dos homens é a vida da criança que importa, e não a da mulher, como só faltam afirmar os médicos reunidos em um comitê que invisibiliza a mãe. Por esta razão, Joy começa a procurar uma alternativa no mundo do aborto clandestino, sem o conhecimento do marido (Messina), nem da filha (Edwards), ou da vizinha (Mara), que perdeu seu marido recentemente. A sós, Jane tem o tempo contra si e a inexperiência fora de casa, pois, até então, era a esposa típica que estampava panfletos da american way of life.

Elizabeth Banks e Wunmi Mosaku discutem o aborto também associado ao movimento dos direitos civis para a pessoa negra

Enquanto isto, a diretora defende o argumento óbvio para a descriminalização do aborto: não é a ilegalidade que impede a secretária de um escritório quando o chefe casado lhe obriga a sofrê-lo ou a filha adolescente de uma família rica que, para não ter comprometido o futuro acadêmico, realiza o procedimento junto ao médico da família. O aborto criminalizado apenas prejudica mulheres pobres e negras, marginalizadas na condição de mulher e mãe. Em contrapartida, o aborto descriminalizado ajudaria a gestante a interromper a gravidez de modo seguro, assistida por médicos (de verdade) e por uma equipe multidisciplinar.

Mas Phyllis não se resume só ao aborto, e utiliza o roteiro como uma metralhadora para disparar críticas variadas: a falta de abertura para que garotas aprendam ofícios no colégio, senão a culinária, a questão do aborto da mulher negra, a desvalorização da mulher na sociedade (que precisa ser reinserida na própria história para discutir seus caminhos). Este excesso até custa à narrativa maior foco: a personagem de Kate Mara não tem a mínima função na trama senão servir de juíza do caráter do marido e aquele interpretado por John Magaro serve apenas para introduzir o clímax e revelar o segredo de uma personagem.

Sigourney Weaver, em um papel que pode conquistar os membros da Academia em 2023, interpreta a chefe do coletivo.

O roteiro falhou em articular a ficção (a trajetória de Joy) e o real (o coletivo Jane), embora a direção mereça elogios por desafiar a expectativa construída durante a narrativa, que parecia caminhar em uma direção, depois em outra, apenas para propor um caminho social, político e feminista que é o melhor que pode ser trilhado. E Phyllis acerta o tom: ao invés de Call Jane ser dramático e ter uma atmosfera densa, é uma comédia dramática ágil e que se vale da cara de um melodrama para quebrar o molde da família e sociedade perfeitas. É uma expressão de que as mulheres não têm mais tempo para chorar, só para agir. Enquanto isto, o bem-vindo senso de humor quebra a objeção de alguns e ajuda a tornar mais acessível uma história de sororidade e renascimento de uma mulher, que aprende, ainda que após muito tempo, como retomar a autoria de sua vida.

Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022

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