Vincent Lindon e Juliette Binoche brincam de Namorados para Sempre no anti-romance de Claire Denis
A diretora e roteirista Claire Denis e os atores Vincent Lindon e Juliette Binoche compõem um trio irresistível de artistas incapazes de oferecer um desempenho aquém ao esperado (salvo Juliette quando decidiu participar de Godzilla, mas todos têm boletos e esta é uma história para outro dia). A trajetória encenada por esta dupla de atores é a degradação do relacionamento, um anti-romance portanto, iniciado após o retorno de um amor do passado de Sara (Binoche), que agora é sócio de seu companheiro, Jean (Lindon), ex-jogador de rúgbi e ex-presidiário que começa a dar a volta por cima e colocar a vida nos eixos, enquanto se reconcilia com o filho (que mora com a avó). O amor dela é avassalador, apaixonante, irracional até, a ponto de romper a barragem do compromisso com um poder destrutivo e imprevisível.
Claire Denis ambienta a história no mundo contemporâneo, em que as máscaras são um item obrigatório do vestuário em tempos de pandemia do Covid-19. Claire, que roteiriza, contrabalanceia duas tramas: o adultério de Sara e as consequências disto no relacionamento com Jean e o restabelecimento da relação entre Jean e seu filho, Marcuso (Perica). Também utiliza eventos incidentais de forma retórica, a exemplo das entrevistas feitas por Sara para seu programa; em uma delas, entrevista um artista negro sobre racismo e o branqueamento da pele, e isto remete a Marcus, filho de uma união interracial.
Apesar da experiência de Claire Denis, o roteiro falha em estabelecer qual a lógica interna que dirige o comportamento dos personagens, que não agem dentro do realismo verossímil proposto. Muito disto é devido a lacunas deixadas em razão de elipses lançadas na estrutura, que jogam a história de lá para cá sem respeitar uma unidade. Não entendemos o motivo por que Jean insiste em que Sara reencontre o ex e agora sócio. Depois, menos faz sentido quando Jean explode em ciúmes. Ora, o que esperava? Se era uma competição de ego ou demarcação de território, isto não fica claro, ainda mais tendo Jean mais dramas particulares.
Claire, roteirista, é salva pela Claire, diretora, que compensa as deficiências do texto com uma direção de câmera elogiável. A diretora dialoga planos abertos, com maior respiro e liberdade, com planos fechados, mais sufocantes e claustrofóbicos, um contraste entre o período de bonança no relacionamento versus a degradação posterior. A câmera, ora estável, ora instável, expressa qual o estado interno dos personagens. Já a iluminação saturada de Eric Gautier também reforça o aspecto mais formal da narrativa de Claire Denis, embora menos do que seus trabalhos anteriores (High Life e Deixa a Luz do Sol Entrar). A imagem reproduz o que sentimos com o relacionamento central, com uma ênfase no feminino e nas emoções conflituosas por que passa Sara mas sem desprezar o masculino.
E, sem menor vestígio de dúvidas, a melhor decisão de Claire Denis é deixar Juliette e Vincent à vontade o bastante para criar duas das melhores composições de suas carreiras (ainda que a dele seja prejudicada pela decisão de roteiro que citei antes). Sem papas na língua, no modo Namorados para Sempre, os dois revelam um abismo não conhecido em um casal que dormia de mãos dadas e que possuía um afeto acima de qualquer suspeita. Ver a degradação dos dois estimula a percepção da fragilidade de relações mesmo quando cultivadas, mesmo quando não falte amor, até para honrar o brocado: o coração tem razões que a própria razão desconhece.
Atualização: Claire Denis venceu o Urso de Prata de melhor direção.
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.