Melodrama familiar falha em desenvolver a personagem central com o mesmo afinco que realiza com as coadjuvantes
Existem filmes que conquistam a atenção nos primeiros minutos. Não é difícil fazê-lo, porém. Um plano sequência bem coreografado ou um momento emocionalmente intenso são formas de puxar pelo braço o espectador para dentro da experiência cinematográfica. É o caso desta produção franco-suíça e em cuja cena inicial, a diretora Ursula Meier retrata o comportamento furioso e destruitivo de Margaret (Blanchoud), a filha mais velha de Christina (Tedeschi), em uma câmera lenta que transforma a explosão emocional em arte abstrata: objetos espatifam-se contra a parede em uma câmera lenta acompanhada de uma trilha sonora clássica, enquanto homens fracassam em contê-la e em provocar o acidente que custa a audição do ouvido esquerdo da mãe.
A relação mãe e filha é frágil de ambas as pontas: Christina culpa a filha por haver arruinado seu sonho de se tornar uma pianista profissional e Margaret ressente o desamor e a falta de carinho, que a empurraram em um abismo de enfrentar frustração e ressentimento pela violência. O ato cometido tem consequências e Margaret é condenada a permanecer, por 3 meses, 100 metros à distância da casa materna enquanto aguarda o julgamento da ação movida pela mãe. Uma medida que violará com frequência seja para confrontar a mãe ou quem esteja ao redor, seja para reencontrar a irmã caçula, Marion (Spagnolo), com a intenção de auxiliá-la no desenvolvimento de seu talento musical.
Após a cena inicial, como espectador, coloquei-me na posição óbvia de questionar a razão de Margaret haver agido como agiu, uma pergunta não respondida de forma direta pelo roteiro, o que não representa prejuízo narrativo já que a história não é a respeito da investigação da causa daquele evento, o mais significativo de uma história de violência. La Ligne é construído na base da sugestão, da constatação de uma relação apodrecida e que tem a oportunidade, remota, de renascer. Ursula Meier, então, está disposta a dramatizar a relação entre as mulheres da família em torno do que ocorreu a partir do presente, sem a intenção de esmiuçar o passado – o que eventualmente acontece de forma incidental, porque a raiz disto advém de padrões comportamentais e emocionais repetidamente encenados.
Embora explore relações familiares pautadas na diferença e complementariedade, com a adição da irmã do meio, grávida de gêmeos, Ursula Meier falha em transformar a atenção do público em envolvimento emocional com a trama articulada. La Ligne falha com quem mais implora socorro: Margaret. A atuação inquestionavelmente dura e sensível de Stéphanie Blanchoud – com ecos de Hillary Swank em Menina de Ouro – evidencia uma mulher que, a qualquer momento, pode começar a desferir golpes contra a própria cabeça ou esmurrá-la contra uma parede ou, pior, agredir quem quer que passe na sua frente em um momento de raiva, inclusive a irmã mais nova. No entanto, a criação a partir de fragmentos generaliza uma mulher bastante específica, com problemas amorosos e profissionais bastante particulares e mal explorados por Ursula.
Margaret herdou o talento musical de Christina, tem uma relação ambígua com o ex-namorado Julien (Biolay, a cara de Benício del Toro), uma busca da figura paterna no bico que lhe ajuda a pagar as contas e um relacionamento maternal com a irmã, mas isto não auxilia a encaixar as peças do quebra-cabeças da personagem, da raiva que a consome, e apenas piora porque a trama divide a atenção dela com as demais personagens.
A premiada com o escanteamento de Margaret é Christina, cuja relação de amor e ódio com a música é evidenciada no ato que lhe custou a perda da audição de um ouvido, que bateu contra o piano, ao mesmo tempo instrumento de realização de um sonho e, depois, memória de um sonho não vivido. A remodelação do cômodo e a rejeição da música somam à personagem que ainda tem a sorte de ser bem humorada e, com isto, atenuar as arestas de uma mulher amargurada por ter dado a luz quando ainda era jovem demais. Christina é um, diferentemente da protagonista, uma personagem cuja construção é auxiliada pelos elementos que a rodeiam, e até mesmo o namorado, anos mais jovem, torna-se peça integrante deste retrato plural.
Enquanto isto, Marion tem uma conexão com a religião que recorda a palavra latina que a originou, religare. Marion quer religar as conexões familiares rompidas, nem que para isto precise maltratar o corpo em jejum e orações. O jeito beato dela não é criticado pela direção, mas enxergado de forma acalentadora, ainda que perigosa, a arma que a garota tem à disposição para reunir as mulheres mais importantes de sua vida. Marion e Christina são melhor aproveitadas do que a protagonista, presa no melodrama frio com prazo temporal, espacial e, infelizmente, emocional também.
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim de 2022.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.