Premiada com 2 Ursos de Prata, a narrativa é baseada em fatos pós-11 de setembro
Muitas vezes em que o cinema teima em puxar, de fatos, a inspiração para histórias, acaba sendo uma filial audiovisual do Wikipédia, com maior preocupação em apresentar datas e eventos do que com a forma como os ilustra. Eu compreendo o motivo de a história real de Murat Karnaz exigir um tratamento mais didático do que um acontecimento de conhecimento geral, até em razão de ser um imigrante turco, residente na Alemanha e enviado à prisão de Guantánamo depois de viajar ao Paquistão, instruído por uma mesquita local logo após os atentados de 11 de setembro. Então, como o objetivo da produção alemã é alcançar um público internacional, é razoável que haja algum grau de exposição para quem não estava familiarizado com a história – tipo, eu? – mas não ao ponto de comprometer a estrutura narrativa, tornando o cinema um porta-voz da enciclopédia da Internet.
Isto ao custo da atuação apaixonante de Meltem Kaptan como a personagem título. Não o George W. Bush, mas Rabiye Kurnaz, a mãe de Marat (sou péssimo em piadas, ainda mais em texto). Rabiye é o estereótipo da mãezona super protetora que chega a sufocar os filhos do tanto que toma de conta deles, às vezes às custas de sua autonomia. A partir desta personagem, sentimos a consequência da prisão injusta de Marat mas de forma retardada e com o tempo. Isto porque a direção de Adreas Dresen investe no humor sem receio de que isto enfraqueça sua narrativa, pelo contrário, afia o espectador e prepara o terreno para a metade dramática que virá. Meltem acerta o tom em cheio no deslumbre contraditório de quem está conhecendo o mundo porém em virtude da prisão do filho.
As passagens de Rabiye por Washington evidenciam o patriarcalismo das famílias muçulmanas, já que é a única mãe que viajam para implorar clemência do governo norte-americano em um discurso emotivo que é comovente mesmo sem tradução (graças ao talento da atriz em evocar o sentimento de dor e ao contraste com a versão cômica da personagem). Antes de fazê-lo, no entanto, passeia por shoppings de rua comprando lembranças para os amigos e familiares. Com o tom dosado entre o cômico e dramático, sem descambar para nenhum dos lados de forma imprudente, a atriz é a boia de salvação de um filme que não tem a mesma sorte com os personagens coadjuvantes.
Ainda que o advogado humanitário Bernhard Docke (Scheer) tenha um arco dramático que acompanha o da protagonista em uma ação gratuita, o roteiro não deixa claro o que esta em jogo para este homem salvo em um momento de estresse que provoca consequências clínicas. Jamais entendemos o motivo, não digo aquele explicitado em um diálogo, mas ideológico, do que moveu o advogado a permanecer 5 anos em um caso que parecia não solucionável. Além disto, a tentativa de criar tensão romântica entre ele e Rabiye, ainda que isto se dissipe rapidamente, ao menos da forma como percebi, enfraquece a narrativa porque não há espaço para isto.
Ainda pior do que Bernard, os membros da família de Rabiye apenas ajudam a montar a versão de uma família perfeita em que o filho do meio aceita o esquecimento do aniversário por parte da mãe e o pai, ainda que relute antes de desaparecer na trama, mantém o mau humor domado. É evidente que uma história igual a esta teria exigido bem mais da família em vez do porta-retrato de mesa de centro que a narrativa decide encenar. Até porque, por 5 anos, para Rabiye havia apenas Murat e qualquer conflito emocional com a família seria varrido debaixo de um tapete do roteiro problemático. E veja que não é desarrazoado cobrar de um roteiro personagens coadjuvantes tridimensionais que também reagiram à prisão de Murat de um modo próprio.
O roteiro não surpreende ao evidenciar a desumanidade de Guantánamo e o envolvimento do governo alemão com o retardamento da liberação de Murat, ainda que falhe em evidenciar a importância deste caso para que a Suprema Corte americana se pronunciasse – em mais de uma ocasião – contrária à violação de direitos humanos ocorridos na ilha cubana. Ao fim, o choque está mais no choque das informações trazidas nos créditos finais do que propriamente na narrativa. Ao menos, ao chegar lá, estamos no território conhecido da Wikipédia em um ponto em que não prejudica a narrativa abrir mão do audiovisual em função da informação. Uma pena desperdiçar uma atuação igual a esta em um filme medíocre.
Atualização: o filme venceu 2 Ursos de Prata, de melhor atuação para Meltem Kaptan e, acreditem se quiser, de melhor roteiro (em breve adaptarei uma notícia da Wikipédia e espero ganhar um Oscar por isto. Ou ao menos um Kikito)!
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.