Mikhaël Hers reproduz François Truffaut em seu drama de época
François Truffaut evitava adoçar o realismo da vida amarga. Evitava colorir o que era preto e branco ou em tons de cinza. Evitava iludir o espectador. E, ainda assim, era um hábil arquiteto em capturar os momentos de candura, esperança e felicidade que existem entre as arestas da vida. Depois de sua morte, não houve muitos cineastas que tentaram ocupar o vácuo que o diretor francês da nouvelle vague havia deixado, mas Mikhaël Hers aproxima-se de emular o cinema humano de Truffaut com este drama agridoce, um mood piece ou filme de atmosfera sobre uma família em transformação em um país que atravessa também um processo estrutural de mudanças profundas com a eleição de François Mitterrand em 1981.
É para este ano que o roteiro convida o espectador. Élisabeth (Gainsbourg) batalha para lidar com o término do relacionamento, a autoaceitação depois de uma cirurgia de remoção do seio e a tarefa de, solo, cuidar da família. Seus filhos Matthias (Richter) e Judith (Northam) ainda são adolescentes e Élisabeth precisará engolir o orgulho e pedir auxílio financeiro ao pai, ainda que temporariamente, enquanto procura um emprego que ajude a pagar as contas. No ínterim, Élisabeth abre a porta de sua casa a Talulah (Abita), uma estranha com problemas de dependência e que muda a dinâmica da família.
Hers busca autenticidade em cada oportunidade que pode, proporcionando uma viagem no tempo através da trilha musical – irresistível! -, dos figurinos típicos do período e sugestivos da personalidade de cada personagem, da maneira progressista de pensar de uma juventude não bitolada ou alienada em fóruns de discussão da dark web ou salas de bate-papo de games. da maneira com que os mais franceses personagens deste Festival de Berlim vivenciam alegrias e tristezas, do próprio ato de rebeldia e revolução em fazer arte e cinema. A textura da imagem, áspera e dessaturada. da fotografia de Sébastien Buchmann remete ao cinema dos anos 80, enquanto a montagem de Marion Monnier enfatiza as elipses que provocam alterações no agir, pensar e sentir dos personagens.
A autenticidade deságua no roteiro, no processo de criação e desenvolvimento dos personagens que vivem, a sua forma, jornadas de amadurecimento verossímeis. Matthias da adolescência à idade adulta passando pela iniciação sexual, Élisabeth de uma mulher de ontem para a mulher de hoje. Se Charlotte dosa a fragilidade emocional de uma mulher que nunca pôde trabalhar antes e que sente a dor na autoestima provocada pela mutilação do seio, Quito rememora Jean-Pierre Léaud, inclusive fisicamente. Léaud interpretou o personagem mais célebre do cinema de Truffaut, Antoine Doinel.
Apesar de o roteiro não fugir ao estereótipo da jovem adulta, Talulah, que ajuda Matthis a se tornar um homem, Noée Abita mescla uma delicadeza no olhar que só rivaliza com a experiência adquirida por viver nas ruas. Fecha o elenco Megan Northam, como a irmã mais velha e mais politizada de Matthias, que desempenha um papel congratulatório das vitórias da mãe e irmão. Assim, cCada personagem enfrenta os dissabores da vida, dos quais Mikhaël Hers não se furta (como Truffaut não se furtaria), mas sabe que, caso permaneçam juntos, apoiando-se mutuamente, encontrarão ternura neste país em transformação.
Crítica publicada na cobertura do 72º Festival de Berlim/2022
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.