A nova versão do icônico herói retoma sua origem detetivesca e serve como base para um interessante neo noir dirigido por Matt Reeves.
Por Thiago Beranger.
É interessante como o voyerismo se apresenta como um tema recorrente do cinema. O motivo é mais do que óbvio: a natureza da sétima arte está intrinsecamente ligada ao prazer de observar sem ser observado. A partir do momento em que o cinema tomou consciência dessa sua característica e começou a refletir sobre isso, o tema passou a dar a tônica de grandes obras ao longo da história. Batman, a nova produção baseada no universo da DC Comics comandada pelo diretor Matt Reeves é mais um desses filmes que resolvem incorporar a ideia de voyerismo à sua trama. A dinâmica entre o protagonista e os personagens que o cercam é totalmente baseada nessa questão. Mas antes de desenvolver o argumento, é importante entender em que contexto isso aparece.
O Batman é um dos heróis com mais encarnações dentro do universo audiovisual, cada uma delas com um diferente tom. Da série cômica protagonizada por Adam West na década de 60 até o filme sombrio que veio ao mundo em 2022, muitas já foram as interpretações dessa história trágica de um órfão traumatizado que se torna vigilante nas noites de uma cidade dominada pela criminalidade. A variedade que existe entre o tom cartunesco gótico de Tim Burton, os filmes meio vergonha alheia de Joel Schumacher, a interpretação realista de Christopher Nolan e os filmes-culto quase religiosos de Jack Snyder – isso sem contar com as diversas animações – tornam complicada a vida de quem se propõe a revisitar mais uma vez esse universo. Matt Reeves, contudo, contorna essa dificuldade buscando inspiração em um estilo consagrado de fazer cinema, o noir.
Um personagem detetivesco, que possui uma óbvia relação com a noite (ou com as sombras) e que possui uma história como a do homem morcego, é um prato cheio para construção de um film noir. Mas apesar de parecer uma escolha óbvia, ninguém nunca tinha bancado a realização de algo como Matt Reeves resolveu fazer agora.
O filme acontece em um contexto em que o Batman está no seu segundo ano de atuação como herói, ainda movido por um forte sentimento de vingança. A história gira em torno da investigação de uma série de assassinatos cometidos pelo misterioso vilão Charada (Paul Dano). A cada vítima, o serial killer deixa uma carta para o Batman contendo um enigma que aproxima o herói de resolver uma grande conspiração de corrupção pela cidade. No meio do processo Bruce/Batman (Robert Pattinson) se envolve com Selina Kyle (Zoë Kravitz), uma garçonete do clube noturno frequentado pela máfia de Gotham, que possui habilidades felinas. O que aparentava ser apenas mais um caso pouco a pouco vai colocando o morcegão em uma posição central na trama e fazendo com que ele descubra que nem tudo o que pensava sobre o legado de sua família é real.
Só com uma leitura rápida nessa sinopse já dá pra perceber características muito claras de uma trama neo noir. Inclusive, vários dos elementos que compõem o roteiro lembram bastante filmes como “Chinatown” (1974). A relação de Selina com seu pai, por exemplo, ou o tipo de conspiração enfrentada por Bruce remetem bastante ao clássico de 74. Outro filme referenciado é “Taxi Driver” (1976). A moral dúbia do protagonista, seus impulsos violentos revelados através de uma locução em off além de toda a construção visual envolvendo a chuva pelas ruas da cidade, fazem com que o mais cultuado filme do mestre Scorsese venha logo à mente. Mais do que referências pontuais a esses aclamados filmes, todas essas características são bem comuns ao formato que tem como principal marca a oposição entre luz e sombras. As sombras que escondem segredos impuros, a luz que desvenda conspirações. Personagens divididos entre seus impulsos e sua consciência. Tudo isso está presente em Batman e compõe sua cosmologia.
Voltando à questão do voyerismo, esta também tem forte relação com o cinema noir. Um detetive é antes de tudo um observador e é isso o que o Batman de Pattinson melhor faz. O personagem efetivamente é uma presença constante em meio às sombras da cidade. Sua postura e o mistério que ronda as suas ações criam uma aura intimidadora – reforçada pelos graves da trilha sonora onipresente de Michael Giacchino – que faz com que os “bandidos” de Gotham se sintam observados pela própria escuridão. Mas não é só nesse sentido que essa característica se concretiza. Uma sequência envolvendo lentes de contato tecnológicas que possibilitam que o herói observe o mundo através dos olhos de outra pessoa leva esse voyerismo às últimas consequências. É usando Selina como um instrumento que Bruce começa a desvendar os mistérios de Gotham.
Um voyer, porém, é tirado de sua zona de conforto quando descobre seu olhar sendo correspondido. É dessa forma que Charada constrói o seu plano. Se Selina vira os olhos de Bruce em determinado momento, o próprio Bruce é usado pelo personagem de Paul Dano ao longo de todo o filme. O vilão assume isso em determinado momento dizendo que sem a força do Batman seu plano não seria possível. O esconderijo escolhido pelo personagem, estrategicamente posicionado na porta do local onde boa parte da ação do filme se desenrola, possibilita que ele espie pela janela o desenrolar dos fatos. Chega a ser clichê, mas funciona como um lembrete para o protagonista – e para o espectador – de que a posição de observador nunca é totalmente segura.
O diretor também aparece como um observador em toda essa construção, e Matt Reeves certamente tem um olhar bastante interessante a respeito desse universo. Isso se concretiza não só na abordagem temática, mas também na construção visual de sua Gotham. Essa é a versão da cidade mais interessante já vista no cinema. A paisagem urbana, opressora, violenta e suja possui uma beleza peculiar. As luzes noturnas dos telões de LED azulados espalhados pela cidade e das lâmpadas amareladas da iluminação pública dão o tom dessa paisagem soturna mas nem de longe desinteressante. Batman é um filme visualmente sombrio, mas nem por isso cinzento como a maior parte do cinema blockbuster tem se tornado.
Essa paisagem serve como pano de fundo para uma obra que está muito mais interessada em subjetividades. O foco de Reeves não está na ação, que aparece pontualmente, mas na forma com a qual essa ação interfere nos arcos vividos pelos personagens. Isso fica claro em uma cena de perseguição entre o Batman e o Pinguim de Colin Farrell. Ao invés de filmar esse momento como um espetáculo, o diretor foca nos rostos dos envolvidos, nas reações deles às explosões e manobras, nos comentários que eles fazem a cada etapa da perseguição. O Batman de Pattinson não é, por exemplo, um grande artista marcial como era o de Christian Bale. Sua luta é eficiente, mas nada performática. É agressiva, feia, brutal, em consonância com a sua personalidade vingativa.
Mas o Batman aos olhos de Reeves já é sim, desde esse novo começo de saga, um símbolo. O diretor parece ter certa fascinação pela silhueta do herói no contraluz. Indiscutivelmente é algo inconfundível, uma marca visual que já representou muitas coisas ao longo de sua história de mais de 80 anos. Alguns dos momentos mais bonitos do filme são justamente quando esse símbolo contempla de cima a cidade de Gotham. Uma cidade repleta de contradições, de violência, de segredos, mas que à luz do lusco-fusco possui também a sua beleza. Da mesma forma é o Batman: contradições, segredos, violência, vingança… Mas quando o personagem é tocado pela “luz” certa, pode significar também esperança. E é dessa forma que o filme resolve encarar o seu protagonista ao final das três horas de exibição.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.