Por Alvaro Goulart
“Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro!”, cantou Belchior.
Cinco anos se passaram desde a sua morte. Apesar disso, me parece um tanto equivocado conjugar o verbo “morrer” para tratar de Belchior fora do universo de seus versos. Lendas não morrem. Em Belchior – Apenas um Coração Selvagem tomamos conhecimento de sua trajetória através das palavras do próprio homem.
Antonio Carlos Belchior Fontenelle Fernandes (1946-2017) é revelado em um autorretrato que mergulha no coração selvagem do poeta, cantor e compositor de Sobral, Ceará.
O documentário se inicia com o anúncio de sua apresentação. Sua rapsódia é narrada tal qual nos tempos dos bardos. As palavras do narrador nos direcionam num transe hipnótico acompanhado por imagens do compositor em conjunto de ilustrações de Dante e a Divina Comédia. Tomados por um misto de curiosidade e fascínio pelo personagem recém descrito, aguardamos os próximos depoimentos que ajudarão a dar forma à lenda que já estava construída em nosso imaginário. Apesar disso, as declarações presentes nesse longa documental são proferidas pelo próprio. Com diversos recortes de entrevistas e gravações, temos acesso à uma fração da mente e coração selvagens. Mas não mais da lenda. Apenas do homem.
A origem cearense é bastante citada ao longo das entrevistas compiladas. A construção de seu gosto musical que trazia desde Luiz Gonzaga, Jackson dos Pandeiros a Ray Charles, Paul Anka e a Revolução Musical de 66 e a Beatlemania. Todos tocados nos serviços de autofalantes da sua cidade natal, e também o veículo de comunicação do nordeste. Sua música expressa esse fusion de estilos, regionais e internacionais. O êxodo rural que fizera – e que também marca sua expressividade híbrida – é outro ponto marcante, principalmente quando Belchior é questionado sobre um possível desgarramento de suas raízes nordestinas com sua vida na metrópole. “Raízes eternas, só a das árvores”, afirmara o poeta.
O próprio compositor define que sua carreira tem sido marcada pela contradição. Seu coração selvagem não continha seus pensamentos nada ortodoxos. Belchior era um apaixonado, mas não em stricto sensu. Suas letras que trazem antíteses de amor e morte, sobre amar e mudar as coisas e, acima de tudo, de falar objetivamente sobre aquilo que só é dito através de metáforas. O poeta soube sorver a inspiração dos contrastes, do caminhar em dois mundos. E de experiências, teve um prato cheio! Tomou ciência das coisas mundanas (álcool, fumo e mulheres) dentro de um ambiente religioso: um colégio de padres.
O descontentamento com a mídia também está presente nesses recortes. O artista critica os meios de massa que não abrem espaço para novos compositores que tem tanto pra falar e sem medo de polemizar – Vale lembrar que esses são os anos de chumbo. A realidade do momento era contada em forma de ilusão. Criticou a recepção recebida pelos recém chegados do norte e nordeste às grandes cidades do sudeste. O deslumbre e o medo, a saudade e a esperança de quem veio de tão longe em busca de oportunidades. A afirmação de uma identidade latino americana também é lembrada no documentário através de suas músicas. Também o interesse de uma maior aproximação do Brasil com os demais países da América do Sul que superaria a barreira do idioma e buscaria uma unidade através do senso comunitário.
Em Belchior – Apenas um Coração Selvagem, ouvimos Antonio Carlos Belchior Fontenelle Fernandes falar sobre si e cantar com o coração. Salvo nos trechos em que o ator Silvero Pereira – também cearense – declamando as letras do compositor em forma de poema, trazendo peso na voz e emoção no olhar marcando cada divisão capitular. Fora isso, o documentário se apresenta de forma hermética e cartesiana. A ousadia da abertura se perde em contornos tradicionais. Se por um lado o longa é uma obra saudosa, por outro, acaba caindo na contradição daquele que clamava pelo novo e que questionava lá atrás que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Competente, mas faltou selvageria ao retratar quem foram Belchior: Cearense, brasileiro, latino-americano, poeta, compositor, cantor, homem e lenda.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.