Lázaro Ramos desperdiça uma ótima premissa em um filme que não acredita em sua própria potência.
Por Thiago Beranger.
Há cerca de onze anos, quando eu tinha meus 15 ou 16, eu caminhei da escola onde estudava até o Teatro Castro Alves, em Salvador – um percurso de menos de quinhentos metros – para assistir a um espetáculo chamado “Namíbia, Não!”. A peça, dirigida por Lázaro Ramos e escrita e protagonizada por Aldri Anunciação causou um imenso impacto em mim ao trazer em sua narrativa, de forma lúdica e ousada, um discurso extremamente potente acerca da desigualdade racial vivida no Brasil. Esse foi um momento de despertar a respeito de uma causa que até então não tinha entrado com a força devida na minha cabeça de menino branco de classe média, mesmo morando na cidade brasileira mais representativa nesse aspecto.
Corta para 2022. Em uma sessão de pré-estreia apresentada pelos mesmos Lázaro Ramos e Aldri Anunciação, na mesma Salvador, assisti ao filme “Medida Provisória”, baseado naquela peça que tanto me tocara anos antes. A experiência foi completamente distinta. Com todo respeito aos artistas envolvidos, pelos quais tenho grande admiração, o impacto que senti aos 15 anos deu lugar à decepção. A sensação é de que uma oportunidade foi perdida. A história criativa e ousada sobre um futuro distópico, onde pessoas pretas (ou de “melanina acentuada”) eram perseguidas obrigadas a sair do Brasil por conta de uma política pública racista que propunha como “reparação histórica” enviá-los de volta para a África, deu lugar a um filme que em momento nenhum acredita em sua potência. Um trabalho que abusa da retórica de um texto repleto de frases feitas para levantar a sua bandeira.
Por mais ideologicamente alinhado que esteja com a minha visão de mundo, não há como não perceber os defeitos. O filme se contenta em ser representativo, mas não busca construir isso através de uma narrativa bem amarrada, que saiba onde quer chegar. Há uma frase utilizada no material de divulgação do longa que o classifica como “uma mistura de Parasita com Black Mirror”. Tematicamente pode até ser verdade. A obra trata sobre desigualdade social, assim como o vencedor sul-coreano do Oscar de Melhor Filme, mas aqui dentro de um recorte racial e faz isso através de uma extrapolação distópica da realidade, assim como a maior parte dos episódios da cultuada antologia. A questão é que tanto Bong Jon-hoo quanto Charlie Brooker e seus colaboradores entendem a necessidade de incorporar o discurso a uma lógica de encenação que se sustente.
Em “Parasita” por exemplo, há toda um processo de construção de relações entre as famílias presentes no filme que vai (literalmente) desaguar em uma sequência representativa do papel social ocupado por cada uma delas. A construção da própria espacialidade das casas e da cidade em tela tem muito a dizer a respeito das dinâmicas que o filme se propõe a estudar. Em “Medida Provisória” tudo precisa ser verbalizado. E isso através de um texto totalmente artificial. Parece que o roteiro do filme foi construído a partir de uma checklist de frases que precisavam ser ditas ou momentos que tinham que acontecer. É um compilado mal amarrado de momentos “quebrando o tabu”.
São inúmeros os exemplos que eu poderia citar para exemplificar o que estou dizendo, mas um é especialmente constrangedor: quando o filme para para que o personagem vivido por Emicida – que aliás, é na música um artista do qual eu sou fã de carteirinha – tire uma arma da mão de uma criança e dê em seu lugar um livro. A cena simplesmente acontece. Não tem um contexto que a sustente, não há um pingo de sutileza ou organicidade em sua representação. Só precisava estar lá.
No único momento em que há a tentativa de uma construção narrativa baseada em um elemento da linguagem cinematográfica, “Medida Provisória” transmite uma ideia que, aos meus olhos, soa extremamente problemática até do ponto de vista ideológico. No seu clímax o filme monta paralelamente duas cenas. Em uma o personagem vivido por Seu Jorge tenta escapar do enclausuramento imposto a ele e ao seu irmão, e é capturado, linchado e morto pela força policial e pelos próprios civis que se organizam em torno do poder racista institucionalizado. Na outra, um homem branco gay, que até poucos minutos antes era um agente relutante do mesmo poder institucional, tenta escapar de um “afrobunker” (organização de resistência comandada por pessoas pretas) quando acaba levando um tiro e sendo morto. Essas duas situações completamente distintas – uma opressiva e outra reativa – são aproximadas em significado pela maneira com a qual são montadas. Desconheço as intenções do autor para esse momento, mas de duas uma: ou Lázaro quis passar exatamente essa mensagem “conciliadora”, construindo uma falta simetria, ou calculou mal os efeitos de sua articulação da linguagem cinematográfica. Qualquer uma das duas hipóteses fazem o filme cair em contradição e se provar mal dirigido.
Uma bandeira justa e uma equipe repleta de representatividade não são suficientes para fazer um bom filme. É preciso que todos remem na mesma direção. Que haja uma articulação coerente de todas as disciplinas para chegarem juntas ao mesmo lugar. E de fato, não é isso o que acontece no longa de estreia do diretor Lázaro Ramos.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.