Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

O Filme da Sacada

O Filme da Sacada

100 min.

Por Alvaro Goulart

“cinema se faz com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, dizia Glauber Rocha.

Em seu experimento cinematográfico, Pawel simplifica a tese de Glauber. A ideia, pra falar a verdade, é bem simples: apontar a câmera e esperar os personagens do cotidiano interagir com ela. E com o incentivo do diretor, pudemos conhecer um pouco daquele microcosmo que é o trecho de uma rua, no meio de Varsóvia, Polônia.

Construídas a partir de conversas do diretor com transeuntes que passam pela rua sob a sacada de seu apartamento em Varsóvia, as histórias do filme são singulares e tratam dos modos como lidamos com a vida na condição de indivíduos

Um registro estritamente etnográfico não seria capaz de “capturar o fluxo de consciência”. O simples vai e vem de pessoas não seria tão rico quanto um fragmento daquilo que está passando em suas mentes. O que, na maioria das vezes, foi despertado com um simples “Quais são as novidades?” ou “Qual o sentido da vida?” questionado por Pawel às pessoas que concediam à câmera um pouco da sua atenção e, consequentemente, um pouco de suas histórias.

A rudimentariedade do processo não é descartada. De início já nos deparamos com a imagem da câmera sendo ligada e fixada no ângulo de interesse. O shotgun – microfone direcional para captar os sons e vozes dos entrevistados invade o quadro em alguns momentos – provando que nada, nem ninguém, será desprezado nesse processo. Afinal, o depoimento de qualquer um que passe ali é de vital importância.

Adultos ou crianças, homens ou mulheres, pais, mães, filhos…até um “mapai” apareceu! Todos puderam contar um pouco de suas experiências e a sua perspectiva sobre o sentido da vida. Com fluidez natural, alguns se sentiram confortáveis a desabafar suas angústias, declarar seu amor pela vida e pelas pessoas, por seu país, mostrando o que tem de pior e melhor a oferecer. O diretor – e nós expectadores – é agraciado até mesmo com uma canção, alguns passos de dança e uma breve e alegre apresentação de mágica. Quem diria que até uma propaganda de sorvete invadiria o registro daqueles metros de calçada enquadrados pela câmera.

E tão distintas foram as histórias que surgiram durante esse experimento! É incrível quantas vivências são invisíveis e que transitam a passos tão próximos dos nossos. Entre arquitetas amantes da moda, famílias compostas de retalhos e agora costuradas, e até mesmo ao registro da esposa e da filha de Pawel, um personagem em especial me chamou a atenção: Robert, um ex-presidiário recém liberto que pretende se reestabelecer apesar de não estar mais tão entusiasmado com a vida aqui fora na mesma medida em que estava quando deixou o cárcere. Apesar de sua aspereza, é ele que compartilha conosco os momentos mais emocionantes com a reflexão sobre sua jornada e as pequenas conquistas, como um documento de identidade com uma foto bem trajado. É curiosa sua interação com um transeunte falada em inglês -Robert é bilíngue – e a relação construída com Pawel através da câmera e de uma camisa social.

Se por um lado ouvir Robert é uma experiência agridoce, amargo é o contato com uma realidade nada bela de uma Polônia problemática. Com um feriado nacional, algumas figuras passam na frente da câmera carregando a bandeira do país e declamando sua declaração míope de amor à pátria através de palavras homofóbicas, machistas e xenófobas. Não consigo ouvi-las e não lembrar – e concordar- com a frase “O patriotismo é o último refúgio do canalha”.  Aflito também fiquei ao ouvir a preocupação de uma senhora com seu problema de catarata que se agrava com passar do tempo e com os constantes descontos pelos exames e consultas até uma solução definitiva que ainda vai descontando de sua precária aposentadoria.

Pra mim é impossível não pensar nas semelhanças daqueles transeuntes com os transeuntes aqui do Brasil. Como alguns relatos poderiam abordar questões parecidas e como todos carreguemos consigo alegrias e angústias que também nos fazem refletir sobre o real sentido da vida. Penso também quantas histórias incríveis poderiam surgir assim, espontaneamente, aqui do meu subúrbio carioca. Curioso quantos relatos invisíveis daqui poderiam ser revelados por uma câmera em uma sacada de uma rua por aqui.

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

2 comentários em “O Filme da Sacada”

  1. Que texto incrível, Álvaro. O documentário tem esse teor de ser construído na nossa frente. E imaginar algo assim poderia ser algo lindo ou chatíssimo, mas o diretor teve sorte ou soube aprender a fazer as perguntas e aproveitar elas. Dando corda. A história do Robert realmente é gigante. E mostra mesmo um país em divisão, estranho pensar nisso que aqui é tão latente. Mas é, me dá a impressão que o mundo todo está polarizado por tudo. Uma loucura colocada num doc absurdo. Amei.

    1. Alvaro Goulart
      Alvaro Goulart

      Fico feliz que tenha gostado do texto! Realmente é muito triste ver essa polarização e perceber que isso também ocorre no nosso país. Apesar de mostrar as várias faces que transitam diante da sacada, não consigo concordar em dar voz a algumas falas. Isso realmente me gerou um incômodo profundo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

J. Edgar

J. Edgar (Idem, Estados Unidos, 2011). Direção: Clint

Rolar para cima