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Diário do Festival de Cannes, Dia 2

Diário do Festival de Cannes, dia 2

Lançamento das Mostras Um Certo Olhar e Semana da Crítica.

Duas mostras tiveram estreia hoje no Festival de Cannes: a Semana da Crítica e a Um Certo Olhar, e é sobre estes filmes que falaremos.  

When you Finish Saving the World (2022), de Jesse Eisenberg

Relações familiares, crise geracional, alienação e incomunicabilidade são temas recorrentes da produção independente norte americana e que fazem parte da estreia do ator Jesse Eisenberg na direção com este When You Finish Saving the World, que realizou algum barulho no Festival de Sundance, e é baseado no áudio drama criado pelo ator. Um filme que, na superfície, pode levantar sobrancelhas em quem assiste com o sentimento comum de “por que eu estou preocupado com os problemas de um jovem de classe média suburbana nos Estados Unidos” ou com a ambição de Jesse em debater emoções complexas relacionadas à maternidade, fora de seu lugar de fala portanto.

O roteiro conta a história de Evelyn (Moore), uma mãe que dirige um espaço para mulheres sobreviventes de violência doméstica. Em casa, Evelyn precisa lidar com o marido ausente, não fisicamente, mas sim emocionalmente, e também com filho único e mimado, Ziggy (Wolfhard), que passa os dias escrevendo canções aleatórias e cantando-as ao vivo para sua audiência em uma rede social em troca de algumas dezenas de dólares. A intenção do diretor é revelar as hipocrisias que norteiam a vida das famílias norte-americanas: após escutar os relatos de mulheres sobreviventes de violências, Evelyn pratica bullying com o filho: quando este pede 5 segundos para uma carona ao colégio, ela espera literalmente o tempo pedido e deixa-o em casa. Imagina então qual a reação dela com as músicas profundas e políticas que ele escreve.

Já o pai (Sanders) mantém um discurso manso e aparentemente atencioso. No entanto, logo no primeiro plano que somos apresentados ao personagem, ele está de costas para a esposa e também para o espectador e parece ignorar o que ela tem a dizer sobre o seu dia. Curiosamente, ele passa mais tempo lendo livros e artigos do que necessariamente se preocupando com a família. Em certo momento, ele pergunta para o filho “você é feliz”. O filho, alheio a de onde veio a pergunta, descobre que a preocupação do pai é fundada em um artigo sobre o suicídio em jovens adolescentes e brancos de classe média alta. É uma preocupação indiferente, digamos assim, fator decisivo para provocar esse distanciamento dentro da família.

E o roteiro também ressalta esse distanciamento na falha de comunicação: em certo momento o rapaz pensa em adquirir um sistema que o permita comunicar-se com seu público na África dada a centena de dialetos que há no continente, embora mal perceba que sequer entende inglês. O não escutar o anseio político de uma garota (Boe, de 13 Reasons Why) por quem se apaixona, e tentar responder de forma narcisista falando sobre seu público chinês é outra evidência de que a narrativa está preocupada com a incapacidade de ouvir, sem a qual não há comunicação. E só há esta escuta quando há empatia em relação ao próximo.

Se a questão da comunicação é executada satisfatoriamente na narrativa, a forma com que o roteiro estrutura-se em buscas realizadas fora de casa por aquilo que lhes falta na família é um tanto quanto óbvia e remissiva do motivo de o cinema indie norte-americano ser praticamente um gênero em si mesmo. A mãe procura no filho de uma mulher sobrevivente de violência doméstica a chave para tentar se reconciliar não com o filho, mas com a ideia romântica que tem da maternidade e do poder de decidir, quiçá impor, o que acredita ser o melhor caminho para a vida dele a despeito de seus desejos. Já o filho procura se relacionar com uma jovem social e politicamente consciente para tentar impressioná-la com as canções que compõem na eterna busca por validação que não encontra na mãe.

Dois bons atores – duvido que Julianne Moore seja capaz de oferecer uma atuação ruim -, que encenam os dramas propostos pelo roteiro dirigido com competente e formal simplicidade como a conclusão irônica em que não há o encontro dos personagens no mesmo quadro, mas uma troca de olhares no plano e contraplano. A sugestão visual de uma forma de proximidade e não necessariamente de união, já que há muita mágoa que mãe e filho precisarão tirar dos ombros para chegar nesse estágio. Com a trilha sonora bastante eficiente criada a partir de sintetizadores, o filme não parece procurar desculpas para discutir os dramas familiares da classe média alta ou investigar a maternidade através do olhar de um homem que tenta fazer o que pode para, de uma forma honesta, buscar a reconciliação que sabemos existir na ficção mas nem sempre na vida real.

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Tirailleurs (2022), de Mathieu Vadepied

Durante a primeira guerra mundial, a legião francesa combatia o exército alemão no front de batalha com o auxílio de soldados convocados das colônias africanas (norte da Nigéria, Senegal, Sudão, entre outros países) com a promessa de que integrariam a sociedade francesa após o gesto de bravura e coragem. Como isto seria possível, não sei, já que aqueles soldados estavam em número menor, desassistidos de reforços (eram o primeiro pelotão, cuja morte seria irrelevante), contra um exército superior. Vale notar que alguns mal conseguiam conviver conjuntamente: religião, idioma, costumes, quiçá a inimizade que poderia haver entre seus povos e que não é levada em conta pelo idealista Tenente Chambreau (Bloquet) cujo desejo de agradar o pai, um general, criará um paralelo poético em um filme até certo ponto burocrático de guerra.

Nesse contexto, Bakary (Sy) tenta resgatar o filho do que acredita ser a morte certa no campo de batalha, até chegar a assistir-lhe ser promovido à posição de líder de um destacamento. A narrativa então estabelece duas questões bem resolvidas: qual autoridade é a maior, a pátria ou a do exército? E como a relação entre o tenente e o pai, que deseja a permanência daquele na guerra mesmo que isto venha a custa de seu sacrifício, contrapõe-se com a entre Bakary e o seu filho, em que aquele não hesitaria em se sacrificar para que o filho retornasse à África.

Há poesia cinematográfica no contraponto entre os filhos – de etnias diferentes, sob o signo de integração e irmandade – tentarem viver à sombra dos pais: um presente somente através da ordem de manter a posição estratégica onde está, o outro presente fisicamente, de tal modo que sufoca a autonomia e agência. Omar Sy foge do estereótipo divertido e charmoso ora estabelecido em Intocáveis ou Samba, em favor de uma presença trágica, que caminha com o peso da responsabilidade paternal na guerra. Vê-lo abdicar de seus princípios religiosos e arriscar ser condenado em corte marcial pelo filho emociona, ao mesmo tempo em que obriga a reflexão a respeito dos pais (metafóricos ou não) que enviam os seus filhos para lutar suas guerras e nelas morrer.

Não há espaço para sentimentalismo nas trincheiras da guerra. A construção da ação repete o padrão estabelecido em O Resgate do Soldado Ryan, proporcionando a imersão do espectador dentro do campo de batalha através da edição sonora pervasiva e da fotografia dessaturada e que acompanha os personagens por trás, enquanto sobrevivem a bombas que parecem cair como castigo dos céus. A encenação derivada, porém, não é um obstáculo para a construção competente das relações que servem de estrutura da narrativa.

Menos eficiente é o roteiro ao obrigar Omar Sy a tomar uma decisão previsível no terceiro ato, que encaminhará a narrativa ao final óbvio e à narração em voz sobreposta, um tanto quanto favorável à guerra literal e imageticamente, ao ilustrar qual o destino daqueles que abdicaram da “mãe França” para tentar salvar a si mesmos. Até entendo o desejo de celebrar aqueles que deram a vida para que a França vencesse a guerra, e com isto a homenagem ao monumento do soldado desconhecido, mas ao fazer isso, o diretor Mathieu Vadepied (diretor de arte de Intocáveis) sequer percebe que, no fim, está defendendo o pai errado.

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Alma Viva (2022), de Cristèle Alves Meira

Se Jesse Eisenberg havia investigado a relação entre mãe e filho no hoje, com base no atrito geracional, a diretora Cristèle Alves Meira busca na relação entre avó e neta, no Portugal de hoje mas que poderia ser ontem, o início da discussão das relações familiares tomado por base a perspectiva de uma criança inocente, que alimenta o olhar do espectador com a candura com que enxerga o mundo ao seu redor, enquanto também desafia o pré-julgamento. 

O roteiro da estreante em longas-metragens Cristèle debate a persistência da memória de modo literal, e como o legado de um ente querido pode influenciar no amadurecimento da jovem Salomé (Lua Michel). Após a morte da avó de causas naturais, decorrentes de uma alegada diabetes mal tratada, embora desejássemos crer que tenha sido por envenenamento com um bolo ou um peixe, Salomé assiste à família carregar o fardo do passado controverso da matriarca. Deve também suportar a herança simbólica de ser taxada de bruxa por aqueles habitantes daquele microuniverso. 

Por se tratar de uma criança, a bruxaria envolve a fantasia decorrente de uma criança impressionada com a ideia de controlar a natureza ou de enxergar e sentir aparições da avó que parece continuar a caminhar de seu lado. É uma fabricação infantil, que o roteiro não deseja esclarecer, ainda mais depois de testemunharmos os vizinhos agirem da forma como agem: atirando pedras, alimentando o rancor do que não tentaram superar. A avó não era uma unanimidade, como é para Salomé, e ser bruxa é também colocar esta palavra dentro de um contexto social de uma mulher que não aceitava viver de acordo com os códigos impostos. São visões – fantástica e realista – que se reconciliam quando se revelam como verdades possíveis, assertivas da personalidade da narrativa. 

A reconciliação é também formal, com a alternância entre o plano subjetivo com o ponto de vista de Salomé ou o close à altura de seu olhar, que nele penetra para buscar suas emoções, e o plano objetivo, de quem assiste à deterioração de laços familiares já frágeis, em desacordo de quando e como será a despedida da mãe. O infantil penetra no mundo adulto, em como um abraço é apto a cessar o ressentimento, ao mesmo tempo em que o mundo adulto acelera o amadurecimento precoce da protagonista, obrigada a reconhecer defeitos antes escondidos na versão idealizada. 

A dupla visão é parte da Alma Viva do filme, é como se Cristèle, diretora franco-portuguesa, combinasse o realismo poético francês com a abstração dos silêncios do cinema portuguesa para ilustrar o luto como o motor de um coming of age que rivaliza quem gostaríamos de ser e quem terminamos por ser. 

Alma Viva | La Semaine de la Critique of Festival de Cannes

Le Otto Montagne (2022), de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch

A amizade de Pietro (Luca Marinelli) e Bruno (Alessandro Borghi) surgiu durante os verões que passavam juntos brincando na natureza e terminou de forma brusca, por uma decisão dos pais, antes de o tempo tratar de reaproximar dois mundos (a cidade e a montanha, o movimento e a estaticidade) e continuar a amizade de onde pararam. Há a semente de um amor platônico não realizado que aproxima este drama de O Segredo de Brokeback Mountain, mas a dupla Felix e Charlotte (diretores de Alabama Monroe e Querido Menino) mantém isto em suspensão para descobrir no amor fraterno o que movimenta a energia desta trama. 

Mais formal do que emocionante, a fotografia de Le Otto Montagne é algo a se elogiar: detrás da razão de aspecto 4:3 que aprisiona ou, se preferir, aproxima estes dois homens, está uma profundidade de campo ampla, que se perde por entre os vales e contornos da natureza. Se a imagem é estreita, o espaço onde os personagens encenam as ações é superdimensionado. Além do mais, se Pietro está no canto direito do quadro, Bruno está do esquerdo, um símbolo que remete à incompletude quando estão separados e que já é antevisto dentro de um carro, quando a câmera se desloca horizontalmente para revelar o banco vazio ao lado de Pietro. 

A edição sonora também é arrojada em como captura nos silêncios da natureza – Bruno não gostaria de ler isto – a paz que este homem parece buscar para curar o passado. É a mesma percepção que Pietro terá quando viajar ao Nepal e começar a descobrir que não nasceu para fincar raízes. Em certo momento (nossa, como gosto do conceito sonoro dessa cena), Pietro recebe a ligação de Bruno dentro de uma cozinha de restaurante barulhenta. A cada porta que abre, o barulho continua acompanhando-o. Quando chega do lado de fora, a sensação de silêncio presente no close do ator é substituída, depois de um movimento de câmera, por garotos jogando futebol ao fundo.

A dupla de diretores é talentosa em arquitetar a narrativa para servir de reflexo da represa emocional dos amigos. Esta abordagem alcança o cume na descoberta de cartas escondidas por um pai de um deles ou na chegada do inverno, estação que contrasta com os verões felizes passados juntos. Até mesmo a barba dos personagens é sugestiva de como está a relação deles, pois se Bruno mantém a sua espessa, como um montanhês selvagem que não suporta a ideia de retornar à civilização, Pietro alterna entre a barba por fazer, a barba cheio e o rosto limpo como simbólico indicativo de como enxerga a si mesmo a partir do amigo. 

Luca e Alessandro proporcionam atuações competentes, construídas no não dito e em poucos momentos de extravasamento e intensidade. Por outro lado, o roteiro exagera na utilização do recurso da narração in off como alternativa para empurrar a história adiante e explicar o que houve com os personagens. E se alguns personagens desaparecem da narrativa, o ritmo mais contemplativo acentua a percepção da duração de 147 minutos e até cria a sensação de que a narrativa é mais prolixa do que deveria ser. 

Nada disso diminui consideravelmente o apelo dramático de uma história sobre uma pessoa que desejo escalar uma montanha apenas e permanecer no alto encarando o que está sob os seus pés, e outro que resolveu explorar oito montanhas e oito mares porque aprendeu que a vida é feita de ciclos, idas e vindas, movimento. Sem apresentar qual a fórmula da felicidade, já que ambos os personagens parecem felizes e infelizes ao mesmo tempo, La Otto Montagne retrata a existência humana a partir da relação com a natureza, natural ou artificial, mas sobretudo com os outros. 

https://www.rollingstone.it/wp-content/uploads/2022/05/LeOttoMontagne_ArtMAIN.jpg

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