A comédia mais socialista do ano
Admiro filmes que transformam histórias simples em narrativas cujos valores e ideologias são revelados e transmitidos sem serem empurrados à força ao espectador. É o exemplo de Jerry & Marge Tiram a Sorte Grande, uma comédia inspirada em fatos que revela muita força debaixo da superfície trivial.
No roteiro de Brad Copeland (de O Touro Ferdinando), Jerry (Bryan Cranston) é um homem na terceira idade, confortável com a rotina diária na pacata e abandonada Winfall, onde criou o casal de filhos junto a esposa Marge (Annette Bening). Ao se aposentar da fábrica de sucrilhos onde trabalhou durante toda a idade adulta como matemático estatístico, Jerry encara o dilema existencial do “agora, o que faço?”. Os filhos o presentearam com um barco de pesca: quando vocês me viram pescar?, Jerry pergunta, e o filho responde, você me levou aquela vez quando criança. Desmotivado, Jerry encontra propósito ao descobrir uma falha na loteria estadual de Massachusetts e começa a faturar consistentemente.
Não demora para que Marge descubra, ou melhor, para que Jerry confesse sem querer que está jogando na loteria. Em vez de recriminá-lo, Marge anima-se porque tem a oportunidade de viver, nos anos dourados, o amor e a adrenalina que não pôde experimentar antes, pois encara a empreitada como se fosse criminosa. Depois, Jerry e Marge criam uma sociedade formada pelo contador viúvo e apático (Larry Wilmore), por um dono de mercearia (Rainn Wilson, de The Office) e pela cidade de Winfall. O que poderia interromper este sonho?
É quando o roteiro insere Tyler (Uly Schlesinger), um estudante de Harvard que descobre a mesma falha na loteria e começa a apostar com a ajuda de seus colegas de faculdade. Logo os grupos começam a competir entre si, e a direção de David Frankel (de O Diabo Veste Prada) começa a explorar os temas que a história trivial proporciona: o conflito geracional, em como as gerações rejeitam e subestimam as gerações anteriores, e a crítica ao individualismo em face à defesa da coletividade.
Eu inclusive acredito que Jerry e Marge Tiram a Sorte Grande seja o filme mais socialista deste ano. Além de ser crítico à postura egoísta e capitalista de Tyler – que explora a mão de obra do trabalhador, os seus colegas, que passam o dia inteiro apostando nos jogos da loteria e não recebem nada em troca por isso – e enaltece a postura socialista de Jerry, ao menos de forma ideológica, que utiliza os ganhos da loteria para devolver à cidade o brilho que antes tinha, em vez de utilizar a riqueza exclusivamente em benefício pessoal.
E mesmo que seja formalmente simples, a narrativa encontra espaço para a fotografia solar e calorosa e os tons de roupa pastéis e agradáveis serem contrapostos às roupas fechadas e sóbrias de Tyler. Mesmo o aspecto vampiresco do estudante, trancafiado dentro do quarto e à frente do computador, opõe-se ao tom de pele corado e rosado de Jerry ou Marge, habituados a se confraternizar com a comunidade em churrascos ao ar livre.
Singelo e agradável, Jerry e Marge Tiram a Sorte Grande é o tipo de filme de domingo, em que a ficção inspirada em história real conforta quem está acostumado a assistir, anestesiado, às atrocidades que o individualismo de sujeitos como Tyler provoca no mundo contemporâneo.
O filme está disponível no catálogo da Paramount+
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.