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Tudo em Tudo Lugar ao Mesmo Tempo

Everything Everywhere All at Once

139 minutos

O multiverso da loucura que merecemos

É ridículo, mas faz sentido”, explica o Alfa Waymond Wang para Evelyn e para o espectador quando tenta racionalizar qual o conceito central do roteiro dos Daniels, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, em que cada decisão, por menor que pareça ser, provoca uma ramificação dentro do multiverso. A sensação é de que, mais e mais, o cinema fantástico deve encontrar um ponto de contato com o mundo real (ou a “verdade objetiva” de que trata Jobu Topaki), pois só a fantasia não basta ao espectador ávido em procurar explicações onde não deveria precisar procurá-las. O filme sensação do semestre, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, em vez do verossímil, adota o absurdo, ridículo e surreal como as alternativas para discutir o que de fato deve ser explicado e faz sentido: as relações familiares modernas.

Multiverso é sinônimo de multitarefa em uma história que, nos primeiros 20 minutos, fornece as informações necessárias para compreendermos quem é Evelyn (Michelle Yeoh, no papel da vida dela após O Tigre e o Dragão): uma mulher de meia idade sino-americana, que mal sabe que o casamento morno está com tempos contados, pois Waymond (Ke Huy Quan) já assinou os papéis do divórcio e precisa ter coragem de entregá-los a ela. Com dificuldade em aceitar a sexualidade da filha, Joy (Stephanie Hsu), e enxergar o caminho niilista que percorre, Evelyn ainda tem que lidar com o pai, Gong Gong (James Hong, 93 anos de carisma, vitalidade e bom humor), e com o IRS, a Receita Federal americana, no cangote de sua empresa de lavanderia (Jamie Lee Curtis interpreta a auditora). 

A vida mal compartimentalizada e repleta de estímulos (os emocionais, Evelyn tenta suprimir) é acentuada pela direção de arte: onde vive, no pavimento superior da lavanderia, a narrativa inicia a partir do espelho minúsculo que comprime a família dentro dele e depois passa à mesa bagunçada, repleta de documentos. Se o caos que rege a vida de Evelyn se torna palpável, também a hiperatividade com que lida com os problemas diários: a câmera e a encenação dos Daniels são inquietas, a primeira acompanha o olhar dela para lá, para cá, a segunda introduz situações e conflitos dentro do espaço de minutos. O pico de adrenalina dita a lógica narrativa e é acompanhada do desligamento e da depressão durante a auditoria com o IRS. 

O caos real de Evelyn, com que o espectador pode se relacionar com facilidade, é equiparado ao caos fantástico do roteiro, em que Alfa Waymond elege esta versão de Evelyn como aquela que deverá impedir uma pessoa com a habilidade de navegar pelo multiverso de destruí-lo. A partir daí, fantasia e metáfora se unem como Yin e Yang: a fuga dessa realidade em direção àquelas em que poderá obter habilidades para sobreviver e cumprir a missão é meio para que Evelyn compreenda o caos em que está e aprenda a desfazê-lo. O multiverso não é o fim, mas o caminho, por isto que o roteiro pode preteri-lo em prol do desenvolvimento dos personagens. 

O ridículo entra em jogo quando personagens precisam devorar batom (não o chocolate, ok?), grampear a testa ou saltar sobre um objeto fálico para criar improbabilidades estatísticas, abrir e acessar realidades inacessíveis e ainda debochar deste cinema chato, explicado e verossímil de hoje. Isso vem ao encontro de um grau de exposição necessário do roteiro, transparente na narrativa nas figuras do sábio (Alfa Waymond) e do aprendiz (Evelyn), dentro da mesma linha de Morpheus e Neo. A propósito, os Daniels afirmaram que, sem Matrix, não haveria este filme: a temática de realidades múltiplas e o que é real e referência diretas, como aquela em que um personagem procura uma saída para fugir: se Neo e Trinity procuravam um telefone, Alfa Waymond e Evelyn precisam de uma ação absurda. 

O roubo existe na forma e no conteúdo do filme: se Evelyn precisa roubar habilidades variadas a fim de permanecer viva – o kung-fu de uma atriz de cinema, a destreza manual na cozinha ou o ímpeto de mover adiante ainda que não tenha pernas como uma pedra – os Daniels fazem o mesmo. Kill Bill, Amor à Flor da Pele, Ratatouille são exemplos de filmes dos quais a dupla se apropria e ressignifica – da mesma forma que Quentin Tarantino – para criar uma obra original. Apenas me incomoda o excesso em modificar, a todo o momento, a razão de aspecto da tela (o tamanho dela) de tal modo que as mudanças se tornam irritantes e indiferentes à construção da narrativa. 

De modo diverso, a fotografia de Larkin Seiple imerge a ação em cores dessaturadas avessas à construção fantástica convencional, como retrato do estágio emocional de Evelyn e da filha Joy. A propósito, ainda que a narrativa valorize as habilidades voltadas à ação e ao kung-fu, faz isso de maneira consciente para situar o espectador dentro do que espera antes de subverter a expectativa com a adoção da empatia e da contemplação como habilidades superiores. Só assim, Evelyn percebe que “todos somos inúteis sozinhos” e que, na realidade, Joy namora a maior fuga da realidade que há. 

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo celebra o poder da fantasia, que não se explica, apenas existe, em possibilitar acesso a emoções e sentimentos que parecem habitar noutra realidade no mundo de estímulos excessivos, a partir de uma linguagem formal descolada, irreverente e criativa. O orçamento modesto permite que os Daniels realizem muito, muito mais do que Sam Rimi pôde realizar, com camisa de força, em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, e a profundidade da discussão é maior do que a da maioria de dramas sisudos e sérios demais. 

* Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo está em pré-estreia em algumas cidades e estreia nos cinemas no próximo dia 23 de junho.

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1 comentário em “Tudo em Tudo Lugar ao Mesmo Tempo”

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