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Olhar de Cinema, dia 2

Olhar de Cinema, dia 2

Um filme sem encenação ensinar a interpretar imagens, e mais

A Ferrugem (La Roya, 2022), de Juan Sebastian Mesa

Jorge é quem ficou para trás. Na fazenda que herdou do pai, com parte significativa roubada por terceiros, Jorge colhe café e cuida do avô, demenciado. Seu relacionamento é com Andrea, prima, e o tempo, em forma de memórias do passado e de sonhos com o pai falecido. 

A proposta de Juan Sebastian Mesa é do cinema de oposição: na fazenda, a atmosfera é pacata. São os sons diegéticos dos pássaros, insetos e vento que preenchem os silêncios de um homem que não tem com quem se comunicar ou, quando tem, caso de Andrea, faz de forma embrutecida. A câmera está estabilizada, porém, e a memória de quem Jorge deixou de ser só existe na cabeceira da cama (onde está mal colado adesivos de Metallica) e nos figurinos que veste (a camisa da Abercrombie). Não há respostas adicionais porque também não há quem as pergunte. 

Na cidade, para onde Jorge viaja para a reunião da escola, o jogo vira. Há muitos estímulos, sonoros e visuais, e a câmera deixa o tripé para a mão. A instabilidade é visual, enquanto Jorge tenta reconciliar-se com a namorada que o abandonou porque não queria ficar na fazenda. As respostas surgem tangencialmente, algumas lacunas são preenchidas. 

O trabalho de Juan Mesa é objetivo. É o tradicional estudo de personagem fundado no silêncio, atrás da porta fechada não receptiva. Não senti vontade de conhecer melhor quem é Jorge, e os 84 minutos na companhia dele pareciam pairar no ar. Juan Mesa cria tomadas bonitas, a exemplo daquela que sobrevoa as plantações de café e encontra um casal transando no meio da floresta, sem desejo de se aproximar daquele momento. Ele ainda delineia uma simbologia do pássaro preso na gaiola pelo assobio e o destino de uma personagem que, quando foge, permanece presa. 

Entretanto, não é o bastante para esta co-produção colombiana e francesa desvendar quem Jorge é ou aproximá-lo do espectador. 

Pasajeras (2022), de Fran Rebelatto

Um dos dois longas-metragens na Mostra Mirada Paranaense, Pasajeras, o trabalho de estreia de Fran Rebelatto, surpreende pela decisão narrativa de, fora na cena inicial, em que vemos no canto da tela o motorista de táxi que conduzirá uma família de mulheres indígenas a cruzar a fronteira que separa Foz do Iguaçu do Paraguai, ser povoada apenas por mulheres. Mulheres lenda, cujas histórias de vida e superação econômicas relacionadas à travessia pela Ponte da Amizade, que une os países, são tema do documentário. 

A articulação é direta e sem filtro. Soledad Alvarez atravessa mercadorias de um país para outro, ofício herdado da família. No restante do tempo, é professora de dança artística paraguaia e convive com a mãe, já idosa, e a filha, que reflete sobre a condição econômica a partir de comentários a respeito do apoio governamental à educação e a condição dos colegas (“Alguns não têm o que almoçar”. Parece um diálogo ensaiado, mas calcado no mundo real de experiências marginais, a exemplo da dela). Koi Suzy Flores atravessa com a família de mulheres para costurar bolsas e preservar a memória dos antepassados. Há mulheres motorista de táxi e mototaxistas e tantas mais vivências que são trazidas diante das câmeras, a partir do olhar observador da câmera da diretora e, breves, depoimentos dados à câmera.

Fran des-invisibiliza muitas mulheres cuja vida depende deste ir e vir, da agência e travessia, com reforço da cultura indígena e popular. Filmado antes da pandemia, em virtude da ausência de elementos visuais como as máscaras e afins, Pasajeros ainda estimula a pergunta do que pode ter acontecido com as mulheres reveladas durante o período do isolamento. Eu adoraria saber e isto é evidência do quanto o curto trabalho de Fran provocou interesse nas personagens.

Filme Particular (2022), de Janaína Nagata

Durante o processo de recuperação de um projetor de 16 mm, Janaína Nagata encontrou um carretel com um filme mudo de origem desconhecida. Com 19 minutos de duração, exibidos na íntegra dentro do documentário Filme Particular, o fragmento revela uma viagem pela África do Sul, por entre safári de animais e o povo de um país. Não há juízo de valor no documentário, ao menos não a princípio, somente a curiosidade da fita encontrada (found footage). Não aquela típica de premissa do cinema de terror, mas a de quem esbarra em tesouro cinematográfico e o exuma com resultados impressionantes.

A partir de pistas deixadas na imagem, Janaína encena uma investigação aprofundada através do oceano de informações na internet. Um dos prazeres da narrativa é o ato de percorrer selvas de aplicativos e links, identificar e resolver quebra-cabeças que geram quebra-cabeças maiores, esperar o trailer de uma masterclass do YouTube antes de poder pulá-lo, pagar para passar pelo paywall etc. Esta tarefa se torna um esforço cinematográfico admirável em que a diretora torna o ato de investigar no fazer cinema, levando-a a descoberta dos metadados da filmagem: o local e tempo da filmagem, a condição histórica na África do Sul, com resultados imprevisíveis. 

Não entrarei em detalhes porque o prazer de Filme Particular está não apenas no ato da busca – que envolve até softwares de reconhecimento facial aplicados na imagem – mas na descoberta. Ao fazer isto, Janaina amadurece o efeito Kuleshov, que não é mais feito a partir do choque de imagens na montagem – em que a imagem subsequente confere significado à imagem antecedente – mas a partir de como telas divididas dialogam entre si. Ao reduzir, por exemplo, a velocidade de um vídeo encontrado em 0.25 e colocá-lo ao lado de trechos específicos da fita encontrada, a narrativa cria um jogo de imagens (e ideias) que é poderoso que convida o olhar a ir de lá para cá por entre o fluxo de raciocínio da diretora. 

Enquanto isso, o ato de explorar o vídeo à procura de pistas nos cantos mais escondidos da imagem revela o poder dela: não são só dados literais, como placas de sinalização ou cenários jogados no Google Imagens, mas o sentido da imagem nela mesma. Em certo momento, uma mulher esconde o rosto e este ato instiga a diretora. Noutro instante, pessoas são contrapostas a ovelhas, uma mulher aparece com o rosto pintado de branco; a força dessas imagens, retiradas do ritmo do fragmento, confere-lhes peso. Antes, o que parecia só fluxo, vira um momento no tempo com significado além do olhar de quem filmou e montou, mas no olhar de quem reinterpreta na descoberta. 

Filme Particular é, ao fim, um filme sobre o próprio ato do intérprete de cinema. O ato de ler a imagem além do centro dela, mas por entre as possibilidades existentes nos quatro cantos do quadro, nas entrelinhas dele e em todo o resto que não vemos e está lá. 

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