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Olhar de Cinema, dia 4

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É Preciso uma Aldeia (Kdyby radši hořelo, 2022), de Adam Koloman Rybanský

Se fosse para realizar um apanhado do cinema do leste europeu desta década, provavelmente haveria algumas dezenas de filmes iguais a este É Preciso uma Aldeia: em que personagens estáticos, dentro de um vilarejo minúsculo, discutem temas contemporâneos com ajuda do senso de humor frio e cínico e da forma simplificada. Todas estas caixas de texto são marcados por esta comédia checa selecionada para a Mostra Panorama do Festival de Berlim deste ano, que acompanha Standa, um bombeiro voluntário, prestes a ser pai, investigando um acidente na festa local ao lado de Brona, o bombeiro sênior e figura paterna. 

Por 5 dias no feriado da páscoa e 1 dia de epílogo, a narrativa esforça-se em revelar o contexto das relações discriminatórias e xenofóbicas no interior Europeu quando Brona aponta o dedo a um terrorista árabe como o autor do que é, obviamente, só acidente. O microcosmos é espelho do pensamento conservador europeu acerca do racismo e de como notícias falsas rapidamente se espalham e sufocam o pensamento racional. Por que pensar e refletir se você pode tomar de empréstimo o pensamento retrógrado de quem você admira? A geografia do vilarejo, com a praça central e a fonte onde acontece a maior parte da ação (literalmente), o cemitério, a igreja e os bombeiros voluntários revelam a dimensão minúscula da cabeça deste tipo de gente. 

Já a forma, com a câmera estática na maior parte das vezes, é uma estética da monotonia de um mundo em que nada significativo parece acontecer, inclusive o acidente que provoca o caos na sociedade é produto do corte, não da ação. O tempo somente não está suspenso porque os letreiros anunciam o passar dos dias e criam a ideia de tração temporal que leva a narrativa adiante. Entendo a proposta formalista da direção de Adam Koloman e, com exceção de uma cena de humor inusitada envolvendo vinagre, falta a emoção que acompanhe o espectador por estes 85 minutos. 

Paterno (2022), de Marcelo Lordello

Filmado em 2017 e apenas lançado agora, 5 anos depois, Paterno envelheceu prematuramente em termos políticos (cartazes de Fora, Temer! na Câmara dos Vereadores de Recife), embora permaneça contemporâneo em termos sociais e evidência da culpa de parcela da elite na crise trágica que tem acontecido com a cidade. O roteiro co-escrito por Marcelo Lordello, Fábio Meira e Letícia Simões é um estudo de personagem do arquiteto Sérgio (Marco Ricca) que, ao lado do irmão Lucas (Nelson Baskerville), herdaram a construtora deixada pelo pai Heitor, acamado com câncer terminal. Enquanto tenta convencer moradores do bairro Brasília Teimosa a vender suas casas para construção daqueles empreendimentos típicos do litoral do Nordeste, Sérgio ainda tenta conciliar a paternidade, o casamento, a ganância do irmão e a descoberta do segredo do pai. 

Com uma decupagem rígida, Lordello mantém a câmera bem próxima de Sérgio como se fosse possível a lente penetrar na mente dele. Ao mesmo tempo, esta composição de imagem revela como Sérgio está, na maior parte do tempo, sozinho no quadro, preso no interior dele. É o tema recorrente da narrativa: o aprisionamento físico, no trânsito caótico e na estrutura social, como ainda simbólico, já que Sérgio nunca pôde (nem poderá) pôr em prática a arte que tanto o empolgava quando jovem. Os personagens ao redor também estão presos por circunstâncias já fundidas na personalidade ou expectativa criada em torno deles: Lucas insiste na realização de projetos convencionais, não ambiciosos que valorizam o bem-estar e a originalidade; Tomás (Gustavo Patriota), o filho de Sérgio, percebe estar condenado à falta de livre arbítrio de quem deve fazer o que o pai deseja que faça; enquanto isto, Thomás Aquino interpreta um homem da periferia que tenta ascender socialmente, antes de receber um choque de realidade. 

Um aspecto que me incomoda em Paterno é consequência da própria natureza do personagem: o autocontrole e a sobriedade contaminam a narrativa. Sérgio é uma panela de pressão, é menos artista (arquiteto), mais negociador. No entanto, embora deixe à mostra a carne em momentos que valorizam o talento de Marco Ricca – um ator que funciona de forma minimalista e expressiva -, Sérgio frustra quem aguarda o clímax da explosão. Isso esfria uma narrativa relativamente convencional. E é a tragédia do personagem, já que os encontros, as descobertas e as explosões pontuais não são educativas muito menos transformadoras para que quebre a grade que o aprisiona. 

Inclusive, as relações familiares são laços iguais a grades de ferro. Paterno revela que, mesmo essa elite que destrói o tecido social da sociedade recifense, não tem para onde fugir. Continua presa no eterno ciclo de repetição, embora o roteiro seja otimista em acreditar que a geração subsequente tem meios de escapar disso. Nessa lógica, o carro é símbolo da alienação: abafa (literalmente na edição sonora) o caos das manifestações que acontecem do lado de fora, mas impede Sérgio de compreender e empatizar com os moradores da Brasília Teimosa. O veículo é blindado, afinal de contas, pois mesmo quando desce das coberturas dos condomínios, a elite ainda está separada atrás de um vidro espesso, ainda que presa no engarrafamento construído por ela própria. 

O Trio em Mi Bemol (2022), de Rita Azevedo Gomes

Depois de Éric Rohmer havia escrito a peça teatral O Trio em Mi Bemol, inspirado em Mozart, é a vez da cineasta portuguesa Rita Azevedo Gomes construir, em torno da mesma premissa, um arcabouço de metalinguagem com que pretende discutir não apenas o conteúdo, mas a criação dele. De forma resumida, o roteiro encena o reencontro de dois amantes, com alguma diferença etária. Eles recordam o relacionamento que viveram e o que Adélia (Rita Durão) está iniciando. 

O formalismo da narrativa é característico da obra da diretora, que fixa a câmera e permite que os atores reproduzam o texto com ares brechtianos – quer dizer, não vemos atores tornados nos personagens, mas atores interpretando personagens. Pode não ser cinematográfico a repetição da linguagem teatral, mas aqui e acolá, a diretora rompe com a estética com, por exemplo, um movimento de câmera que reposiciona os ex-amantes fora do campo. O imobilismo é ilusório, cita Paul, pois o corpo se mexe por dentro. 

Contudo, é pela metalinguagem que a direção diferencia-se e propõe algo novo. Na cena inicial, à noite, o comportamento caricatural de Paul (Pierre Léon) parece ser a razão por que o diretor dentro do filme, Jorge (Ado Arrieta), interrompe as filmagens sem saber expressar exatamente o que não funcionou. Na manhã seguinte, com o texto similar embora não idêntico, a tomada já é diferente. Rita brinca com o ato de fazer cinema de um diretor cujos sonhos perseguem-no e que se coloca ausente ou indiferente à filmagem, como se o texto de Éric Rohmer pudesse se encenar a sós. 

Evidentemente que não pode. Nenhum texto é maior do que a forma que o corporifica, mas a diretora brinca como se isto fosse possível. Como se fosse possível escutar a melodia do piano sem o pianista dedilhando as teclas. O mágico é invisível; a magia, não, e Rita Azevedo formata este discurso em dois níveis: o do filme dentro do filme, não há mágico (bem como no romance, de certa forma); no filme propriamente dito, o dedo dela se faz presente de forma indistinguível. 

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