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A Viagem de Pedro

A Viagem de Pedro

96 minutos

Cauã Reymond interpreta o imperador Dom Pedro I no retorno a Portugal

Exibido no Festival do Rio de Janeiro (FestRio), premiado com os prêmios de direção e ator coadjuvante, e na Mostra de São Paulo do ano passado, A Viagem de Pedro trabalha o evento histórico do retorno de Dom Pedro I à Portugal, deixando para trás o Brasil e o filho Dom Pedro II, para reaver o trono ocupado pelo irmão Dom Miguel, o usurpador. Em vez de fatos contados com o rigor que a disciplina histórica requer, percepções e sensações mais afetas à poesia e prosa cinematográfica. Mencionei ambos porque este trabalho, enquanto é um esforço narrativo clássico, almeja também a rima, a partir do comportamento errático do protagonista. 

Interpretado por Cauã Reymond, Dom Pedro I é retratado como um homem atormentado e tripulante do navio que, apesar de atravessar os oceanos literais que separam Brasil de Portugal, também cruza figurativamente os rios Estige e Aqueronte que separam o mundo dos vivos do mundo dos mortos na mitologia grega. Na Fragata Warspite, Pedro enfrenta o purgatório ao rememorar a relação com as mulheres de seu passado: a primeira esposa Leopoldina (Luise), a relação com Domitila (Rita), o casamento com Amélia (Victoria), neta de Napoleão Bonaparte, quem Pedro aspira a ser ao admirar e apreciar a imagem dele. 

Impotente em múltiplos níveis, o liberal Pedro relembra a usurpação do trono. Ou pode ser que fantasie, pois a partir de certo momento, torna-se impossível distinguir a realidade da fantasia. Já a tripulação negra e recém liberta da escravidão não lhe confere o respeito que acredita merecer – o chefe de cozinha, no primeiro contato, sequer o encara ao entregar-lhe a sobremesa – e, na embarcação, Pedro não está em posição de comando, mas subjugado ao Comandante Talbot (Francis). Já a falência sexual, produto da ansiedade, impede Pedro de se sentir masculino e viril como era antes, levando-o a recorrer a ofensas e abusos que escancaram o homem minúsculo em que se tornou (ou que sempre foi). 

Curiosamente, Pedro é subordinado à visão feminina da diretora Laís Bodanzky. Ela reduz a razão de aspecto para o formato próximo ao quadrangular, enclausurando Pedro no interior de si. Na fragata, o poder de Pedro é limitado ao olhar e à memória: o olhar com que flerta a liberdade que representa o mar, a memória para onde foge em direção à culpa, ao remorso. O adoecimento é rivalizado com a degradação psíquica e emocional de Pedro, com a ajuda da montagem de Eduardo Gripa, que intercala os níveis de consciência do protagonista, de forma suave e fluida. O que é real e irreal não é destacável, senão em momentos extremos, em que Pedro abre a porta do cômodo do Comandante e encontra os convidados rindo de modo surreal. 

O que não é fantasia é a questão racial debatida na Fragata. Até pode destoar da estrutura de estudo de personagem, a espinha dorsal da narrativa, em que Pedro é o objeto central e a percepção subjetiva dele está irremediavelmente atrelada à do espectador. Mesmo que Laís vulnere essa estrutura, a potência da narrativa justifica a decisão narrativa: Dira (Zuaa) e o Contra Almirante Lars (Bungué) são retratados de maneira objetiva, tal porque não haja como enxergar a justiça racial de modo diferente. Quando Dira é acusada injustamente de furto, Laís não quer que enxerguemos o evento pela lente da subjetividade, porque somente há uma resposta possível. 

Contudo, é a perspectiva contemplativa de Pedro, ao encarar o passado e a expectativa de retorno a Portugal, e a não confiabilidade de seu olhar as formas adequadas de A Viagem de Pedro expor sua saúde emocional fragilizada. Resta-lhe apenas o mar revolto para quem foi hostilizado e indesejado no país onde nasceu e também no país que adotou, de maneira que a terra deserta e desconhecida à frente parece ser o reinado possível a este imperador. 

E também onde enfim encontraria paz. 

Crítica publicada durante a cobertura do 50º Festival de Cinema de Gramado

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