Stallone interpreta super-herói aposentado em filme que tem mais a dizer do que a Marvel/DC já disseram
Se o ápice do cinema de super-heróis fosse nos anos 80 e 90, Sylvester Stallone teria sido um dos protagonistas. O ator estrelou a adaptação de Juiz Dredd, O Juiz, recebido com má aceitação do público e da crítica, e agora, a 4 anos de completar 80 anos, estrela Samaritano, que explora as possibilidades restantes do subgênero antes da exaustão e inevitável declínio.
Stallone interpreta Joe Smith, um catador de lixo que, nas horas vagas, recolhe eletrônicos para poder consertar em casa como forma de terapia. Enquanto segue na vida pacata, sem familiares nem amigos, é observado por Sam (Javon), um garoto de 13 anos, que acredita ser Joe o super-herói dado como morto Samaritano. Para obedecer as expectativas criadas, as suspeitas de Sam não são infundadas, e a revelação da identidade secreta acontece em meio às tensões iniciadas pela gangue encabeçada por Cyrus (Asbæk, o Euron Greyjoy de Game of Thrones).
Há muitos elementos bacanas ignorados nas produções da Marvel/DC e trazidos ao primeiro plano em Samaritano. O melhor deles é retirar a glamourização do super-herói com a devolução dele às periferias onde surgem. Se o super-herói é a resposta da sociedade ao crime que foge do controle – a origem do Batman está associada ao assassinato dos pais, do Homem-Aranha, do tio, vítimas da epidemia do crime -, então quando a ameaça se torna intergalática, interplanetária ou multivérsica, o heroísmo deixa de conversar com o mundo em que vivemos e passar a ser, única e exclusivamente, uma ferramenta de escapismo. Mas não em Samaritano, em que o (anti-)heroísmo é enxergado no plano das produções Marvel/Netflix (por exemplo Jessica Jones, Demolidor e Luke Cage), dentro da dinâmica da sociedade, sem a necessidade de floreios ou excessos.
Ao deslocar o ponto de vista a Sam, a narrativa também devolve os super-heróis à fantasia de crianças e adolescentes (não de adultos que sobrevivem à base de nostalgia). Samaritano é a resposta de Sam à realidade penosa em que está: a mãe tenta manter as contas em dia, a escola mal é citada dentro da trama e o crime organizado tenta cooptá-lo para participar de delitos. Sam está na encruzilhada entre integrar a estatística do crime e trilhar o caminho dos (raros) sortudos que escapam dela, e eu aprecio a (óbvia) alusão do nome dele ao do super-herói que admira.
O roteiro pode não ser o mais perspicaz. Ao iniciar a narrativa contextualizando quem foram Samaritano e Nêmesis, arqui-inimigo e também irmão gêmeo, Bragi Schut semeia duas possibilidades óbvias: a de que Joe é o super-herói ou o super-vilão reformado. Não ajuda o fato de introduzir elementos que dirigem a percepção do espectador, a exemplo do caderno de recortes com manchetes de jornal dos atos heróicos de Samaritano. Não há surpresa, e ainda que isto não seja demérito isoladamente, a impressão era de que o roteiro e a direção de Julius Avery, de Operação Overlord, almejavam isso, a considerar a forma picotada com que apresentam o confronto final entre Samaritano e Nêmesis.
De outro lado, a narrativa ilustra a atmosfera de desolação e desesperança da periferia com a aposta em cores metalizadas – que sugerem a comoditização da pessoa marginalizada, a engrenagem do sistema despida de dignidade e direitos. A direção ainda comenta acerca da ausência da força policial, exceto para coletar a propina, e como os super-heróis podem ser desassociados de valores nobres por defenderem a manutenção do sistema que exclui e marginaliza a periferia que deveriam proteger (ex. o super-herói não ajuda a mãe ou o pai desempregados, nem as crianças em situação de rua, mas impede um roubo a banco). Assim, o maior desapontamento é como o roteiro desperdiça Cyrus no vilão maniqueísta e boçal que é, características acentuadas pelos excessos de Pilou Asbæk.
Já Sylvester Stallone não perde a chance de adotar a persona de Rocky Balboa, depois da aposentadoria, e começa a ser, a contragosto, um coach de uma juventude que deve decidir em qual adulto deseja se tornar. Os valores conservadores comuns à obra do ator – para ser justo, da maioria dos atores de ação de sua geração -, não se revelam em obstáculos para que Samaritano seja o exemplar raríssimo do cinema do subgênero que tenha algo a dizer. Pode não o fazer através da forma burocrática tal como os superpoderes do personagem, mas no discurso que a Marvel/DC pareceram esquecer.
Samaritano está disponível no catálogo da Amazon Prime
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.