O tinido auditivo e a obsessão em história sobre atleta de salto sincronizado
Oito anos depois do ótimo Obra, o diretor Gregório Graziosi combina drama existencial e estudo personagem com elementos do cinema de terror em Tinnitus. A narrativa ora flerta com temas comuns ao cinema de Darren Aronofsky, habituado com a busca obsessiva pela perfeição e sentido, ora com elementos de estilo presentes em Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock. O todo final pode estar aquém à soma das partes, ainda que haja bastante a ser desbravado na narrativa.
A história inicia com Marina (Joana) e Luísa (Indira) na plataforma para executarem saltos sincronizados. Um zumbido perturba Marina, que executa o primeiro, o segundo, até tombar inconsciente no terceiro salto. Anos depois, Marina está em tratamento para o tinnitus, a sensação de “ouvir” sons ainda que não haja som externo, o que, na narrativa, alcança o status de alucinações auditivas que perturbam e desconcertam os personagens. Marina abandona o esporte e o sonho olímpico para ser a sereia do aquário da cidade onde mora.
Gregório propõe uma experiência sensorial e imersiva na edição e mixagem sonoras, de Fábio Baldo e Marina Bruno, mas com resultados irregulares. Ainda que não seja inédita, a ideia de reproduzir, no som, o tinido permanente que Marina escuta favorece a empatia do espectador com a condição da protagonista. Com esta decisão, o espectador pode sentir a confusão, o incômodo e a razão que leva Marina à decisão drástica tomada no terceiro ato. Entretanto, a ideia funciona melhor na teoria do que na prática, pois carece de rigor. Não parece haver razão para escutarmos o tinido quando Marina não está em cena; até poderia ser o aceno para enxergar a presença da atriz na ausência, digamos nos dramas relativos a Luísa, Teresa (Alli), que começa a apresentar os mesmos sintomas, Dr. Santos (André) e na treinadora e figura materna interpretada com doçura e emoção pela veterana Thaia Perez.
A presença do tinido de modo permanente, ou na maior parte do tempo, pois será atenuado a partir de certo instante, compromete a experiência do espectador de se situar na narrativa. E é curioso isto, porque Gregorio utiliza, em apenas uma ou duas ocasiões, a perspectiva subjetiva para expor a forma como Marina ouve o mundo e as pessoas ao seu redor. Esta identificação forçada alcançada através da representação formal da condição de Marina, aproxima a narrativa de Cisne Negro, Réquiem para um Sonho ou Pi, trabalhos de Darren Aronofsky que tratavam da alteração e deformação da imagem. Neste caso, é o som, mais do que a imagem, ainda que Gregório também subverta o que enxergamos até por entender a relação umbilical, no cinema, entre áudio e visual.
Contudo, O Lutador é também um trabalho de Darren Aronofsky de que me recordo quando assisto à dedicação de Marina ao trabalho no aquário e a obediência ao tratamento médico, até perceber que está sufocando a paixão obsessiva que tem pelo salto sincronizado. Não importa quem tenha que passar por cima e nem o agravamento da condição, a obsessão de Marina a ensurdece para qualquer consequência de suas ações. Neste sentido, Joana de Verona é o tipo de atriz que pode reproduzir a dubiedade esperada da protagonista, enquanto Indira Nascimento, a sensação de traição por não ter tomado ciência, até ser tarde demais, da condição de quem deveria ser o espelho.
A propósito, não consigo desvencilhar a narrativa de Um Corpo que Cai. Não somente pela natureza obsessiva da personagem, mas como a questão de duplos está entranhada dentro da trama e do esporte que retrata. A entrada em cena de Teresa, a nova dupla de Luísa, e a semelhança física com Marina atordoam meus sentidos. Em certo momento, até desconfiei se Teresa era real ou projeção. Gostei dessa sensação, desse tinido cinematográfico, ainda que a resolução dada pelo roteiro à subtrama pareça aquém das possibilidades que possuía. Igual sentimento tive com a Inácio (Antônio, sempre ótimo), cujos sintomas eram ainda maiores do que os de Marina, mas cujo drama é mero instrumento para compreensão e reflexão da protagonista.
Ao fim, temos Marina, que contempla e sonha além da limitação oferecida pela condição a esperança de retornar a realizar o esporte que ama. Pode não ser razoável a decisão final dela, mas quem somos nós para julgá-la se o tinido que escutamos é apenas fruto da magia do cinema?
Crítica publicada durante a cobertura do 50º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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