Um terror psicológico sobre a terceirização da criação dos filhos e as relações de trabalho
Em Nanny, o terror é a ferramenta escolhida para discutir a situação de Aisha (Anna Diop), uma imigrante ilegal senegalesa, que consegue um emprego de babá para um casal rico em Manhattan com a intenção de viabilizar a vinda do filho, que ficou sob os cuidados de sua família no Senegal. À medida que a trama avança, a relação com os patrões desanda e uma presença sobrenatural ameaça o desejo de Aisha em se reunir com o filho, colocando em risco até a pequena Rose, de 5 anos.
Logo chama a atenção a ambientação do designer de produção Jonathan Guggenheim, que torna impessoal, frio e hostil o apartamento onde moram Amy (Michelle Monaghan) e Adam (Morgan Spector), apesar de ser amplo e espaçoso. A ironia ainda está presente no figurino com que conhecemos Amy: um macacão alvo como a neve, enquanto constrói uma relação de proximidade falsa com Aisha, ao recebê-la com um abraço. Já Mark, ausente da família e recluso dentro do escritório, demonstra ter segundas intenções para como Aisha.
Engana-se, porém, quem pensa que Aisha se coloca na posição de vítima. O roteiro escrito por Nikyatu Jusu, que também dirige, cria uma protagonista ciente dos direitos que possui. Aisha se impõe à família, não aceita o pagamento abaixo do combinado em razão de horas extras acumuladas, muito menos a crítica de Amy ao modificar a alimentação de Rosa para a comida que prepara e compra com o dinheiro do próprio bolso. Além disso, não tarda para que haja uma briga de egos entre Amy e Aisha ante a preferência de Rose pela última, com quem convive a maior parte do tempo. É uma crítica em mão dupla: primeiro, aos pais que terceirizam a criação dos filhos; depois, à Aisha, que abre mão (temporariamente) do filho a fim de cuidar da filha dos outros, deixando-o também aos cuidados de terceira pessoa.
Inclusive, o ciúme do garoto literalmente transborda em linguagem de terror. Aisha acredita que o cômodo que ocupa está sendo inundado; noutro momento, que uma sereia a agarra em direção ao fundo do mar; Aisha ainda avista a sombra de uma aranha gigante na parede ou uma cobra na cama. Alguns destes momentos envolvem a água, que desempenha uma função específica na trama, outros parecem inseridos casuisticamente e pouco comunicam em termos de metáfora. No lugar, tem um papel mais diretor em criar a atmosfera de delírio da protagonista, acentuada pela trilha sonora de Bartłomiej Gliniak e Tanerélle, que combina sons desconcertantes com instrumentos musicais senegaleses, e a direção de fotografia de Rina Yang, cujas cores e iluminação expressivas conferem ares expressionistas ao terror de Aisha.
Ainda assim, não há como ignorar a sensação de falta de estrutura da narrativa, incapaz de interligar a vida pessoal de Aisha – o relacionamento com Malik (Sinqua Walls) – com a vida profissional. A sensação que tive é de que o trabalho de babá sufoca a vida pessoal – o que faz sentido, é verdade -, embora não haja instante em que Aisha demonstra inconformismo quanto a isto. Além do mais, Nikyatu Jusu trabalha tanto em cima da reviravolta, em que oferecerá uma explicação para os fenômenos sobrenaturais (alguns deles, pelo menos), que quando chegou tive a impressão de que havia desvendado o que ia acontecer bastante tempo antes.
Para piorar, alguns dos eventos são acomodados na narrativa de qualquer jeito, sob a parca justificativa de se tratarem de alucinações. Ora, na casa vigiada 24 horas por dia, qual a forma de justificar erguer a faca para a pequena Rose, mesmo que estivesse sendo tomada por visões sobrenaturais? A necessidade de criar momentos impactantes, sobretudo no ato final, prejudica a construção do terror mas não dilui a força que há na atuação de Anna Diop e na discussão trazida à primeiro plano sobre a terceirização da criação dos filhos e a culpa decorrente da negligência parental.
Nanny não tem data de estreia nos cinemas brasileiros ou nas plataformas de streaming.
Filme assistido no 47º Festival Internacional de Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.