Mia Goth eleva o sarrafo maníaco-psicótico em uma prequel ainda melhor do que X
O diretor Ti West filmou o terror slasher X: A Marca da Morte durante a pandemia de Covid-19 na Nova Zelândia, em razão do êxito do país em controlar a propagação do vírus. Durante o período obrigatório de quarentena no ingresso no país, Ti West e a atriz Mia Goth, que interpretou a protagonista sobrevivente Maxine e a assassina idosa Pearl (não há mais como manter o spoiler dentro da caixa), escreveram uma história de origem desta personagem que, na pior das hipóteses, seria um exercício para a atriz modelar a vilã de X. A dupla foi além. Além de se aproveitar dos cenários construídos, com equipe ainda mais reduzida, Ti filmou em sigilo da imprensa a história de origem, exibida na sessão da meia noite do Festival de Toronto após o lançamento no Festival de Veneza.
O ano é 1918. Os soldados americanos, que haviam viajado para combater na 1ª Guerra Mundial, estão começando a retornar para os seus lares, mas não Howard (Alistair Sewell). Enquanto o espera, Pearl permanece na fazenda da família a sós com a mãe conservadora e religiosa (Tandi Wright) e o pai debilitado pelo derrame (Matthew Sunderland). Só a amiga Mitsy (Emma Jenkins-Purro) quebra a morosidade da rotina, assim como as idas raríssimas à cidade a mando da mãe. Em uma dessas idas, Pearl conhece o projecionista vivido por David Corenswet, que a convence a participar da audição para integrar o espetáculo organizado por uma igreja itinerante e, talvez, realizar o sonho de ser vedete do cinema.
A narrativa adota a forma de um melodrama saído da Era de Ouro de Hollywood, com o excesso de cores do extinto padrão Technicolor, adaptado pelo diretor de fotografia Eliot Rockett, como se estivesse produzindo a versão macabra de O Mágico de Oz. Esta opção estilística rompe com X e explora o que a mídia cinematográfica tem de melhor: a habilidade de transformar algo apenas pelo poder da imagem. A fazenda decrépita parece até idílica e bucólica, em contraste com o interior escuro e opressivo da casa onde reside a família e as ações violentas abrigadas. O sangue evita o realismo típico do slasher contemporâneo, em favor da artificialidade de sua gênese, como uma tinta que perverte e degrada os cenários externos e frutifica os pensamentos maldosos da protagonista.
Assim, de formas diferentes, X e Pearl são filmes sobre a quarentena. Enquanto o primeiro trata a respeito do confinamento da equipe de gravação de um filme pornográfico numa fazenda texana e o desejo de fugir tão logo a matança começa, Pearl discute o isolamento noutras dimensões. A começar pelo pai, confinado a uma existência assistida, ou pela mãe, que assumiu o encargo de permanecer para cuidar da família e da fazenda. Já em Pearl, o espectador enxerga a consequência na mente suscetível de uma mulher ambiciosa, mesmo que inocente, posteriormente ressentida e temperamentalmente psicótica.
Tandi Wright modela a mãe inspirada na de Carrie, A Estranha, vivida pela indicada ao Oscar, Piper Laurie. Apesar de haver menos elementos religiosos e fundamentalistas, Ruth oprime a filha, humilhando-a e a violentando verbal e fisicamente. Já Emma Jenkins-Purro aparenta aquela jovem prístina, que pensa em Pearl como um projeto social e de caridade. Mas é a atuação de Mia Goth, ainda mais intensa do que em X, que eleva a narrativa além do estilo puro e simples. Existe uma componente macabra e perturbadora em Mia, que faz frente à previsibilidade do arco dramático negativo dela: é divertido, de modo sórdido, trilhar o caminho da personagem da ilusão à desilusão, do excesso inócuo ao excesso brutal. O monólogo dela durante o jantar é um daqueles momentos que, em outro gênero que não o terror (discriminado dentro das premiações), aguçaria a atenção de quem quer que fosse o votante.
É por Mia que Pearl se torna ainda mais sólido do que X, pois se o confinamento no anterior é desculpa para o assassinato serial, obediente às regras da maioria dos slashers, neste evidencia a deterioração e degradação da personagem até o close final, o iris shot (o círculo que foca na personagem) em que a atriz sustenta o olhar, o sorriso artificial e as lágrimas da maneira maníaca com que imaginamos ser a turbulenta mente da já clássica personagem do terror contemporâneo.
Pearl terá exibições durante o Festival do Rio.
Filme assistido durante o 47º Festival Internacional de Cinema em Toronto
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
7 comentários em “Pearl: Uma História de Origem “X””
pela resenha, acredito que você não viu o filme.
Por que você acredita nisso?
Péssima resenha e comentários! Que safra péssima de “críticos” de filmes, é o espelho bem deformado e feio da atual geração.
Obrigado pelo comentário (mas não culpe a atual geração, sou de uma geração passada) 😉
Não entendi o motivo dos comentários desrespeitosos acima.
Que gente mal amada e infeliz.
A resenha está ótima!
E sim, Mia Goth merecia demais ser valorizada por esse filme, pena que, como você disse, a Academia ignora sistematicamente o gênero.
Obrigado pelo comentário, Jonathan <3
Vi o filme ontem, muito bom, lembra um pouco Carrie pelo comportamento da mãe, Mia Goth dá um show de interpretação, concordo com o que disse Jonathan, só não leva o oscar porque a academia não valoriza o gênero terror, sempre prefere os dramalhões estilo Casablanca.