Glenda Nicácio e Ary Rosa retornam a Cachoeira em um trabalho que imprime em tela a dimensão metafísica peculiar ao recôncavo baiano.
Por Thiago Beranger.
Meu primeiro contato com o cinema de Glenda Nicácio e Ary Rosa foi há alguns anos, através do ótimo “Café com Canela” (2017). Lembro de ter escrito na época que o longa trazia o afeto para o centro de sua narrativa, fazendo com que ele servisse como um elemento curativo das feridas e dramas dos seus personagens. É interessante perceber que em “Mungunzá” (2022), novo trabalho da dupla de diretores, há um movimento bastante contrastante com o que descrevi anteriormente. Aqui feridas parecidas geram uma outra energia, dessa vez baseada na vingança. Essa palavra, tão estigmatizada, ganha um significado diferente. Como em outros bons filmes que a trazem como tema central, ela aparece como algo quase que positivo, associada à ideia de justiça.
Ainda que haja em “Mungunzá” uma ideia aparentemente oposta à de “Café com Canela”, isso só se sustenta em uma camada mais superficial. O novo longa também possui em sua receita uma boa dose de afetividade. A protagonista Arlete (vivida magistralmente pela atriz Arlete Dias) é complexa e apaixonante. É justamente pela impossibilidade de viver plenamente os seus afetos que a personagem se ressente. Isolada e machucada por opressões de diversas espécies, ela enxerga em uma reação violenta a sua única saída. Mas ainda assim, suas vivências, sua religiosidade e seu encanto permanecem características fortes. O filme gira em torno dessas questões, transmitindo-as através da mistura de um texto potente com a singeleza de belas canções. Potência e singeleza. Arlete Dias passeia lindamente por essas duas faces de sua personagem.
As opressões que a protagonista vive são aquelas associadas às suas vivências enquanto mulher, preta e lésbica. Ela mesma se afirma nesse lugar. É interessante a decisão tomada por Glenda e Ary de manifestarem essas opressões através da figura dos personagens vividos por Fabrício Boliveira. O ator encarna diversos aspectos do peso que recai sobre Arlete. O ex-marido pai ausente e irresponsável (ainda que “carismático”), o pastor que representa a opressão do cristianismo sobre a religiosidade de matriz africana, o “Meu Prefeito” associado a uma opressão política/classista. O texto conecta tudo isso nesse jogo entre masculino e feminino. Todas as opressões são faces de uma mesma energia masculina que subjuga e sufoca o feminino. A escolha de dar todos esses personagens ao mesmo ator enfatiza imageticamente essa ideia. Torna o discurso algo palpável. Uma escolha semelhante é feita em outro filme de 2022: o britânico “Men – Faces do Medo” de Alex Garland. Porém, enquanto o trabalho de Garland gira em torno dessa única característica, transformando-a em um elemento de estranheza vazia, Ary e Glenda passam por isso para se aprofundarem em questões mais interessantes.
Situar esse jogo em um palco confere ao longa uma óbvia verve teatral, gerando como consequência uma ideia de artificialidade. Boliveira representa papéis. Esses papéis são quase que arquétipos de manifestações corriqueiras de formas de opressão. É um ator, desempenhando seu ofício. Por mais que ele confira competentemente uma identidade diferente a cada um desses personagens por meio dos artifícios que possui – expressão corporal, voz, caracterização, etc – ainda assim é um único homem, uma única entidade que se manifesta de várias maneiras. As mulheres do filme, pelo contrário, são todas interpretadas por atrizes distintas. Mesmo em um lugar (palco) onde tudo é artificial, elas são reais. Arlete Dias, sobretudo, encarna essa característica, que se fortalece com o fato de a protagonista ter sido escrita especificamente para ela. Enquanto Fabrício Boliveira desfila seu talento e versatilidade, Arlete trabalha com sua própria essência. Desnuda a sua potência, sua delicadeza, seu lado mais feroz e suas vulnerabilidades. Ela é tudo isso em uma única personagem, uma única mulher. Os dois atores em cena estabelecem essa oposição, portanto. Um ator que representa vários homens e várias facetas que se reúnem em uma só mulher.
Por fim, há algo de característico no cinema de Ary e Glenda que aqui se revela desafiador. Os realizadores sempre imprimem em seus filmes uma identificação forte com a regionalidade. Em “Mugunzá”, esse local é mais uma vez a cidade de Cachoeira, onde os diretores se radicaram e construíram suas carreiras. O desafio aqui é conferir essa identidade regional ao espaço fechado de um estúdio/palco. O resultado é que esse talvez seja o filme da dupla onde essa característica consegue ser mais presente. A energia da Bahia e especialmente de Cachoeira está ali, com toda a sua espiritualidade e força. No texto isso fica claro, mas há algo mais. Algo que é até difícil de descrever objetivamente, porque é uma sensação, uma aura, uma dimensão metafísica que amarra energeticamente os elementos que estão em cena.
Mais do que sobre a vingança de uma mulher, esse é um filme sobre essa força espiritual que invade a tela. Que se manifesta na afetividade da relação de Arlete – a personagem – com seu filho, com as suas falecidas mãe e Joana, com os Orixás, com seu “nêgo”, mas que se manifesta também na ira, na raiva, na vingança em relação ao prefeito, ao pastor e a tudo o que lhe impede de ser plena. Tá tudo ali naquela panela de mugunzá.
Assistido no XVIII Panorama Internacional Coisa de Cinema em Salvador.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.