Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

The Fabelmans

5/5

The Fabelmans

2022

151 minutos

5/5

Diretor: Steven Spielberg

Steven Spielberg volta às telonas com uma verdadeira declaração de amor ao cinema em forma de cinebiografia.

Por Thiago Beranger.

O que é cinema? São 24 frames por segundo projetados em uma tela grande? Uma forma de arte capaz de representar sonhos? Para que serve uma câmera? Para fazer um simples registro da realidade ou para a livre expressão de um artista? The Fabelmans, novo filme de Steven Spielberg, literalmente abre com essa discussão. Um casal de pais aparece explicando para seu filho ainda pequeno o que é o cinema antes que o menino entre em sua primeira sessão. 

O pai, Burt (Paul Dano), engenheiro elétrico que trabalha com computadores, expõe sua visão. Cinema pra ele é um fenômeno que pode ser explicado por sua técnica. São os 24 frames por segundo que criam uma ilusão de movimento graças à capacidade de processamento do cérebro humano. A mãe, Mitzi (Michelle Williams), ex-pianista e dançarina que largou as artes para se dedicar à família, também expõe a sua visão. Para ela estar no cinema é como estar em um sonho e a câmera é como um pincel, que possibilita a expressão de um autor. Os dois estão certos. O cinema, desde o seu início, se viu entre essas duas visões. Entre o registro mecânico da realidade dos irmãos Lumiére e Thomas Edison e a capacidade criativa de Méliès e Alice Guy Blaché. O menino, por sua vez, se chama Sam (Mateo Zoryan/Gabriel LaBelle) e representa em tela o autor do filme, Steven Spielberg, que, assim como o cinema, se vê dividido entre essas duas visões.

A incrível Mitzi de Michelle Williams entrega a Sam sua primeira câmera.

O que vemos em The Fabelmans é esse embate basilar da história do cinema, representado pelos dilemas de uma família. E o mais curioso é que essa é uma versão ficcional da família real de Spielberg. É simbólico que um dos maiores diretores do cinema hollywoodiano tenha nascido de verdade desse embate. Seja fruto dessas duas visões que aparentam ser antagônicas, mas que, na verdade, se complementam. Não haveria arte sem técnica. A técnica seria vazia se não estivesse a serviço da arte.

Voltando aos primórdios da sétima arte, convencionou-se dizer que tudo começou com um trem. Conta-se que na primeira exibição pública de cinema  da qual se tem notícias dezenas de pessoas se assustaram ao se depararem com a imagem de um trem chegando na estação. Muitos se levantaram e correram desesperados ao pensar que a locomotiva romperia a tela e invadiria a sala escura onde estavam. É simbólico que Spielberg comece seu novo filme também com esse símbolo. Sam sai daquela primeira sessão com os pais completamente fascinado. A imagem do trem descarrilhado não sai de sua cabeça e não o deixa dormir. Ele pede como presente de Hanukkah (o Natal dos judeus) uma miniatura da máquina, para que possa reproduzir a cena que não o deixava em paz. Ao perceber a sanha do menino, os pais mais uma vez discutem e quem desvenda o mistério é a mãe: o filho ansiava por controle.

Em um tempo onde o home-vídeo e o streaming estavam longe de existir, controle não era uma possibilidade para o espectador do cinema. Por natureza, a sétima arte coloca sua audiência em uma posição passiva, diante de uma tela gigantesca, no escuro, sem saber com o que irá se deparar. O que assusta Sam não é a violência da cena que viu em O Maior Espetáculo da Terra (1952) de Cecil B. DeMille e sim o fato de não poder ter o domínio sobre ela. Essa necessidade é marcada por um lindo momento no qual o menino projeta nas suas próprias mãos a primeira filmagem de sua vida. É dessa maneira que o pequeno Sam/Spielberg se descobre realizador. Ser passivo não era mais uma opção. The Fabelmans revela então o que realmente é: o coming of age de um dos maiores diretores da história.

Já mais velho Sam (Gabriel LaBelle) exibe seus filmes caseiros para amigos e família.

A partir daí o cinema vira brincadeira. São anos de descobertas, ilustrados em alguns minutos de tela. As imagens são absolutamente mágicas e tocantes. Ver um senhor de 76 anos com maturidade o suficiente para conseguir nos mostrar o mundo a partir dos olhos de uma criança é fantástico. Aliás, ainda que Sam cresça, a imagem do filme preserva o tempo todo seu encantamento. Há uma espécie de “esfumaçamento” que lembra a escolha feita por David Lynch em seu Cidade dos Sonhos (2002) justamente para dar um caráter onírico às imagens. Spielberg usa de recurso parecido para nos oferecer as suas memórias repletas de amor pelo cinema e por sua família.

É através desse encantamento que entramos na dinâmica familiar do protagonista. Os Fabelmans são uma família tradicional americana: pai, mãe (já descritos) e quatro filhos. Sam e três irmãs mais novas. As visões de mundo conflitantes de Burt e Mitzi vão se tornando cada vez mais um problema. À medida em que o protagonista cresce, vai se tornando também mais capaz de perceber as nuances do relacionamento conjugal de seus pais, sempre através das lentes de uma câmera. É por meio dos registros em vídeo, que Sam pode deter também certo controle das narrativas que rondam sua família. Seu olhar romantiza o que vê, até o momento em que percebe uma verdade terrível que obriga o menino, já adolescente, a descobrir o real poder de outro recurso tipicamente cinematográfico: a montagem.

Dois filmes são feitos sobre o fatídico final de semana em que os Fabelmans e seu agregado mais próximo, Bennie (Seth Rogen), saem para acampar. Um é montado para revelar a família feliz e perfeita em momentos agradáveis. As imagens que revelam a parte desagradável daquele feriado – o adultério de Mitzi – são suprimidas, tornando-se um segundo filme. A família perfeita rui. Sam se reconhece na falha de sua mãe. Reconhece nela a mesma “alma de artista” que o move. Aquela que, em determinado momento, é apontada por seu tio avô (Judd Hirsch) como uma dádiva e uma maldição. Aquela mesma que seu pai, mesmo com todo amor e boa vontade, não consegue compreender. O filme do acampamento revela outra face da imagem do cinema, uma face desencantada. Ao mesmo tempo que essa é a arte de contar belas mentiras, é também uma arte que revela verdades inconvenientes.

Sam parte para a última fase de sua formação. Agora precisa lidar não mais apenas com a família, mas com outras pessoas à sua volta. O famigerado “high school” é momento de viver novas experiências. No curta que produz sobre a sua turma, há toda uma narrativa complexa construída sem nenhuma palavra. De maneira sonsa, Sam diz que apenas apontou a câmera pro mundo sem nenhuma manipulação. Mas há muito ele sabe bem que não existe neutralidade no cinema. Sua câmera é uma caneta. A escolha de como, onde, quando ela estará registrando a realidade não é nada aleatória. Se a escola é lugar de aprender, o protagonista mostra no baile de formatura que está pronto para apresentar seu talento ao mundo.

The Fabelmans ilustra a gênese de um dos maiores diretores de todos os tempos.

Não sem antes ganhar um conselho de uma das maiores lendas do cinema mundial, o diretor americano John Ford. No epílogo do filme, Spielberg reproduz uma passagem famosa de sua vida, na qual teve uma breve conversa com o lendário cineasta, aqui interpretado pelo também lendário David Lynch. É uma escolha interessante essa escalação. Talvez diga muito sobre como Spielberg enxerga o cinema e como se enxerga também em meio ao dilema vivido em sua própria família.

Sam/Spielberg – assim como o próprio cinema – viveu um conflito entre duas perspectivas. A tecnicista representada pelo pai, que se impressiona com a engenhosidade prodigiosa do filho ao construir soluções na feitura de seus filmes. A artística da mãe, que se emociona com a expressividade sensível demonstrada pelo filho em seu trabalho. No fim, as duas perspectivas são importantes, mas é a alma artística do protagonista que se sobressai e transforma a brincadeira em necessidade, o hobbie em ofício e os 24 frames por segundo na capacidade de representar sonhos. Quem melhor do que Lynch para traduzir isso no cinema contemporâneo?

Márcio Sallem também escreveu sobre o filme na cobertura do Cinema com Crítica do 47º Festival Internacional de Cinema de Toronto. Você pode conferir o texto clicando aqui.

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