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The Fabelmans

The Fabelmans

151 minutos

Quanto mais pessoal, melhor: a autobiografia que precisávamos sobre Steven Spielberg

Muitos diretores têm empregado o cinema como um processo terapêutico para recordar quem foram, enquanto discutem sua relação com a arte. É verdade que a arte já contém pedaços do autor, seja nos temas discutidos, seja em aspectos que os envolvem. Contudo, de uns tempos para cá, diretores têm empregado a sua vida e as suas experiências diretas ou indiretas como matéria prima da narrativa cinematográfica, “deixando” os bastidores para se tornarem heróis das histórias que contam. Se Roma somente adotava a perspectiva de Alfonso Cuarón dirigida à secretária doméstica de sua residência em um período específico no México, Belfast, Armageddon Time e The Fabelmans trazem os diretores ao centro da ação. Mas a obra autobiográfica de Steven Spielberg dá um passo além: no lugar do olhar ingênuo e condescendente infantil a temas sensíveis (a guerra civil na Irlanda ou a discriminação racial nos Estados Unidos), a apreciação de questões familiares do ponto de vista mais maduro adolescente ou jovem adulto. 

O roteiro co-escrito por Spielberg ao lado de Tony Kushner (de Amor, Sublime Amor, Lincoln e Munique) inicia quando Sam, criança, vai com os pais pela primeira vez aos cinemas para assistir a O Maior Espetáculo da Terra. Apesar do temor de Sam com as pessoas gigantes na tela, o garoto fascina-se de tal maneira com a imagem que tenta reproduzir o acidente férreo na narrativa e registrá-lo em imagem, incentivado pela mãe a utilizar a câmera 16mm do pai. Aí é plantada a semente de Steven Spielberg para quem a câmera é instrumento de enfrentamento de traumas, pois ao exercer controle sobre a imagem produzida (refletida na palma de sua mão em determinado momento), controla também aquilo que o aflige, assusta e angustia. E The Fabelmans é a forma definitiva de fazer isso, desnudando a sua história e dominando a fração do mundo diante de si. 

A narrativa é o modo de Steven Spielberg avaliar a relação que teve com o pai, Burt (Paul Dano), um workaholic cujas promoções obrigaram a família a se mudar de cidade para cidade até chegarem a Los Angeles e cujo pragmatismo orientou o pensamento prático de Sam. Ou a relação com a mãe, Mitzi (Michelle William, no papel típico pelo qual a Academia gosta de premiar), de quem obteve o incentivo e herdou o amor à arte, embora ainda com uma pitada de ressentimento com o relacionamento extraconjugal com Bennie (Seth Rogen, enxergado não como um destruidor de lares, mas como um sujeito divertido e por quem é fácil se envolver). Ou enfrentar o bullying antissemita que sofria no colégio. A imagem é o dispositivo que revela a verdade, não fatos, mas a verdade do autor, formulada a partir do produto de memórias, emoções e percepções. 

Não falta domínio técnico à narrativa repleta dos elementos formais característicos da obra do diretor. No início do filme, Spielberg sublinha a forma como enxerga as crianças em seus filmes, enquadrando-as à altura do olhar, forçando o espectador a identificar-se com Sam e obrigando o pai Burt a descer ao nível dele, em vez de a câmera ser movimentada em sua direção. Ao lado do diretor de fotografia e colaborador habitual Janusz Kamiński, Spielberg transforma em tema recorrente (leitmotif) o agigantamento dos personagens que Sam tanto temia quando era criança. As figuras de autoridade são enquadradas de baixo para cima – a exemplo do pai, de Logan, ou dele próprio, no terceiro ato, quando acredita ter dominado a arte da imagem. Isso sem esquecer a brincadeira que realiza com o conceito de horizonte da imagem, convidando um diretor a interpretar o diretor da Era de Ouro no qual Spielberg se inspiraria. 

No âmbito da sensibilidade, Spielberg atenua a pieguice do drama de amadurecimento com pitadas de humor (Judd Hirsch está impagável como o tio Boris, em um papel que devolverá o ator veterano ao Oscar mais de 4 décadas após ser indicado por Gente como a Gente). Já a metalinguagem, enquanto revisita os filmes caseiros que produziu, obrigou-o a utilizar a criatividade e os recursos práticos de outrora para criar o que hoje produz, com facilidade, através de efeitos visuais computadorizados. Isso sem contar com as referências aos seus trabalhos: de Tubarão, nas filmagens na praia do vídeo escolar, a Amor, Sublime Amor, na dança no colégio. 

Já o elenco é afortunado em contar com atores profissionais talentosos e atores jovens (ou amadores) ainda melhores: Mateo Zoryon Francis-DeFord é adorável e expressivo como o jovem Sammy, enquanto Gabriel LaBelle tem carisma e presença para interpretar a versão adolescente. Contudo, é Chloe East, que vive Mônica, a namorada de Sam, que conquista o espectador com sua atuação extrovertida e divertida. 

Apesar de o filme parecer autoindulgente como autobiografias naturalmente tendem a ser, na realidade The Fabelmans é uma carta de amor e empatia do diretor septuagenário à si mesmo, à família e à arte que ama, fruto da ciência, espontaneidade, criatividade, bom humor e sentimentalismo na medida certa. Se Steven Spielberg sempre criou obras-primas que justificassem os (raríssimos) tropeços de sua carreira, este, ao lado de Munique, são as grandes criações do autor neste século. 

The Fabelmans estreará nos cinemas brasileiros apenas em fevereiro de 2023.

Filme assistido no 47º Festival Internacional de Cinema de Toronto

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2 comentários em “The Fabelmans”

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