Madame Satã, O Céu de Suely, Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo, O Abismo Prateado, Praia do Futuro e o vencedor da mostra Um Certo Olhar de 2019, A Vida Invisível, são alguns dos clássicos nacionais dirigidos pelo cearense Karim Aïnouz antes da oportunidade de estar atrás das câmeras de Firebrand, que não é o debute internacional de Karim, mas o hollywoodiano. Por mais que esteja feliz e celebre a carreira do conterrâneo nordestino, a estreia está bem aquém aos trabalhos passados.
Firebrand inicia com o reinado provisório da rainha Catherine Parr (Alicia Vikander), a sexta esposa do Rei Henrique VIII (Jude Law). O monarca habituou-se a livrar-se das esposas na guilhotina ou no calabouço, criando em Catherine o alerta de que não poderia andar fora da linha caso desejasse conservar a cabeça presa ao corpo ou não ser condenada por heresia. Durante a ausência do marido, Catherine apoiou Anne Askew (Erin Doherty) e o discurso de reforma protestante no país, apoiada por este ou aquele nobre, particularmente os Seymour (Eddie Marsan, o mais velho, e Sam Riley, o mais novo), em oposição à religião do monarca excomungado do catolicismo depois da anulação do primeiro casamento. Quando Henrique VIII retorna em razão do agravamento da infecção purulenta em sua perna, Catherine enxerga o futuro ameaçado e movimenta peças no tabuleiro de xadrez para sobreviver.
Narrado pela filha do monarca com Ana Bolena, a segunda esposa, e que viria a se tornar a Rainha Elizabeth I – bastante sugestivo dos caminhos narrativos -, o roteiro escrito pelas irmãs Henrietta e Jessica Ashworth (de Fale com as Abelhas) situa com facilidade o público na corte dos Tudor e do jogo de interesse que há entre aqueles que estão do lado direito de Catherine, literalmente na mesa de reunião, e os que estão do lado esquerdo, em particular o bispo Gardiner (Simon Russell Beale, o clássico personagem que adoramos detestar do início ao fim). As roteiristas são hábeis em estabelecer a relação parasitária entre a igreja e a monarquia, à qual aquela devia sua sobrevivência, e a centralidade de Henrique VIII, o rei cujos problemas físicos eram inversamente proporcionais à ameaça à Catherine.
Entretanto, apesar de haver valores de produção inquestionáveis com a recriação de época de maneira não anacrônica, salvo a trilha sonora de Dickon Hinchliffe, falta à Firebrand a pimenta que Jude Law injeta em Henrique VIII. Ameaçador, apesar de caricato, o monarca é apresentado desafinando na flauta, presenteando Catherine com o papagaio e soltando um sonoro Whaat? ao ser questionado. Até passa-nos a impressão de que o rei é patético, mas de forma divertida, só que a crueldade gravita ao redor do personagem assim como moscas fazem ao redor da ferida em sua perna. A despeito dos momentos em que Karim Aïnouz o ridiculariza, ao transar animalisticamente com a bunda de fora e ao enfiar o dedo na orelha, ninguém duvida da maldade do monarca.
Se Jude Law merece aplausos, Alicia Vikander não tem o mesmo êxito. A aparência blasé da atriz, eficiente em determinados papéis, atrapalhou meu envolvimento emocional com a personagem. Catherine só é vista tramando. E ainda que possamos concordar com a intriga e a condição de sobrevivente numa corte indiferente, o fato de não diferenciar o semblante saudoso da personagem ao se encontrar com Anne, de quando, no jantar real, humilha a jovem com que Henrique VIII flertava para marcar território levou-me a não importar com a personagem. Apenas com a ideia que defendia ou em virtude da opressão que sentia.
Catherine não é diferente de qualquer membro da realeza, e a distância cronológica e social é bastante para não haver empatia com a condição deles, senão motivada pelo elemento histórico. Posso até gostar intelectualmente de quando Catherine diferencia Hades – o reino dos mortos, inevitável – do inferno – cujo nome tem um juízo prévio de condenação -, pois esta pode ser a chave para compreender a caracterização de Vikander. Porém, ao fim, não houve comunhão.
A direção de Karim Aïnouz esforça-se em conferir a Firebrand personalidade já nos créditos iniciais, com o título ocupando a dimensão da tela, e sobretudo em como permanece fiel às mulheres da narrativa conservando a câmera próxima delas. É um fogo criativo brando, que não aquece nem ilumina, mas ao menos evita que a narrativa seja somente mais uma obra de época sem sal.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.