Recentemente, Martin Scorsese deu uma entrevista agridoce em que reconheceu a idade avançada e a escassez de tempo para contar as histórias que gostaria de contar. O diretor finalmente compreendeu o discurso de Akira Kurosawa após receber o Oscar, “Só agora estou começando a ver a possibilidade do que o cinema poderia ser, e é tarde demais…”. É que, se alguns diretores experientes amadurecem presos à rígida forma do que já fizeram, a cada trabalho que passa, Scorsese demonstra ter a curiosidade de um jovem em explorar a linguagem, ainda que isto signifique repensar o seu próprio estilo.
Além disso, a humildade de Scorsese apenas rivaliza com a maestria com que compreende a essência de cada narrativa. Ele tem moldado a si mesmo à forma dos filmes, sem que isto dilua sua identidade artística. O enérgico e moderno O Lobo de Wall Street, o contemplativo e espiritual Silêncio ou o solene épico O Irlandês são assinados pelo mesmo diretor, assim como este épico histórico e criminal Killers of the Flower Moon, adaptado pelo diretor e Eric Roth (Forrest Gump e O Informante) a partir do best-seller de David Grann.
A narrativa tem início com o retorno de Ernest (Leonardo DiCaprio) à Osage County, da guerra que não combateu, embora tenha permanecido nos bastidores como cozinheiro. Ele se reencontra com o tio Bill (Robert De Niro), cujos altruísmo e caridade são as fachadas do egoísmo e da ganância com que rende a cidade à sua vontade. Isto é equivalente a trajar o terno alvo ou conversar no idioma Osage com os nativos-americanos – quem quer revelar ser – com o momento em que o piso xadrez reflete em seus óculos ou em que é enquadrado no contra-luz de uma projeção, ilustrativo de quão manipulativo e falso é.
“Não me chame de Senhor, chame-me de tio ou Rei”, explica ao sobrinho, da mesma forma passivo-agressividade com que manipula as circunstâncias e decide os rumos daqueles ao redor. Já Ernest, cujas limitação intelectual e inaptidão social são ilustradas no olhar tolo, no cabelo infantilmente repartido no meio, na postura curvada e em como projeta a mandíbula à frente (prognatismo), começa a trabalhar como motorista de táxi, quando conhece Mollie (Lily Gladstone), uma das filhas herdeiras do campo de petróleo ambicionado por Bill.
O roteiro não deseja formular mistérios, pois desde o princípio confirmamos a desconfiança de quem é o mandante das mortes dos nativos-americanos que acontecem na reserva, a maioria atribuída a diabetes ou doenças, com a anuência dos médicos legistas e a omissão da polícia corrupta. Na cidade em que é o Rei, o plano de Bill é intrincado e se aproveita do casamento entre Ernest e Mollie: eliminar os membros da família de Mollie até esta ser a herdeira solo e, por consequência, o marido Ernest.
Por empregar as aparências, a narrativa também esconde a violência, marca registrada de Scorsese. Esta invade bruscamente a imagem na montagem seca de Thelma Schoonmaker como também vulnera e promove rachas na comunidade falsamente pacata e acolhedora. Quando um personagem dispara fatalmente contra o outro, a brutalidade rompe o ritmo da ação e mantém-nos em estado de tensão permanente, pois a qualquer momento, isto pode repetir-se sem que estejamos preparados para o que virá.
Sem o whodunit com que se preocupar, Scorsese pode trabalhar com menos obviedade e mais profundidade na narrativa. Faz isso desde o prólogo, quando o enterro de um membro da tribo Osage revela o filão de petróleo que a enriquecerá e também provocará tragédias. Pois não são somente as doenças dos colonos que os nativos-americanos adquiriram, mas também as doenças sociais, causadas pela riqueza súbita no mundo capitalista, mesquinho e ganancioso. Assim, a narrativa é uma crônica épica e metonímica da formação espiritual dos Estados Unidos: o conceito de enxergar uma oportunidade e aproveitá-la, nem que isso prejudique o Outro, é trabalhado nos personagens que cometem de fraudes a homicídios do mesmo modo, sem remorso.
Robert De Niro está em uma de suas melhores atuações recentes, ilustrando a desfaçatez e mal-caratice na voz mansa, empática e acolhedora. A cena em que toma Ernest pela orelha está entre as minhas preferidas, pois é quando Bill deixa cair temporariamente a máscara que tornará a vestir quando tenta convencer o sobrinho a assinar um certo documento. Já Leonardo DiCaprio está bem, apesar de me incomodar com o excesso de atuação. Gosto bem mais dos momentos que obrigam o ator a encarar a contraditoriedade do personagem, que é o herói da narrativa apesar de confessar, desde o princípio, amar o dinheiro. Por fim, Lily Gladstone interpreta uma mulher altiva e determinada, que se expressa através do olhar mais do que palavras e da palidez e desfalecimento crescentes, e que desaparece pouco a pouco em razão da ação dos homens.
O restante do elenco composto por Scott Shepherd, Jesse Plemons, John Lithgow, Brendan Fraser, Tantoo Cardinal etc é homogeneamente competente, e cada ator aproveita a isca deixada na narrativa, a exemplo de Brendan na cena que o apresenta ao espectador em um ângulo de baixo para cima que o agiganta e o torna ameaçador. A propósito, a colaboração de Martin Scorsese e o diretor de fotografia Rodrigo Prieto tem proporcionado sequências memoráveis. Por duas ocasiões, em plano sequência, a câmera passeia pelos cômodos da casa de Ernest e Mollie e constrói um arco daquela família de antes e depois que é eficiente tanto quanto é doloroso.
Contudo, nada à altura dos diálogos poderosos entre DiCaprio e De Niro ou do primeiro e Gladstone no terceiro ato, ou a sequência do epílogo, que registra o fascínio do espectador com crimes reais e a fragilidade desse formato quando ignora as consequências de reviver o crime e as vítimas indiretas. Um erro que um mestre igual a Martin Scorsese jamais cometeria.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.