Em frente ao espelho, antes de ser dada em casamento pelo pai ao calejado Abel, a doce Rosalie implora: faça com que ele me ame. A súplica poderia ter iniciado com espelho, espelho meu. Isto porque o drama fantástico escrito pela diretora Stéphanie Di Giusto (de A Dançarina) juntamente a Sandrine Le Coustumer, livremente inspirado em uma história real, adota a forma de conto de fadas que subverte A bela e a fera, enquanto ainda conserva a essência da crítica àqueles que acreditam que a aparência é reflexo do interior.
É que Rosalie (Nadia Tereszkiewicz) tem uma doença, a hipertricose, que causa o crescimento exagerado de pelos no corpo. Ela é a fera, ao olhar das pessoas da vila onde mora, e é também a bela, apaixonada por leitura, escrita e em se doar em sacrifício a terceiros. Ainda que inicialmente rejeitada pelo marido, Abel (Benoît Magimel), Rosalie traça um plano para ajudá-lo a saldar a dívida com o dono de uma indústria local e patrono da igreja comunitária, Barcelin (Benjamin Biolay). Ela decide empregar a aparência, que antes escondia, como o chamariz para atrair clientes ao café e bar abandonado por Abel.
O resultado é exitoso: Abel começa a quitar a dívida que ameaçava a propriedade e Rosalie, a enfrentar o pesadelo que a atormenta à noite. Desde o momento em que aceita a si mesma, Rosalie torna-se uma integrante ativa e admirada da comunidade. Contudo, nada é simples: a autoaceitação é um processo demorado e com reveses. Abel ainda hesita em enxergá-la como mulher, Barcelin e a comunidade religiosa a qual patrocina perseguem-na.
Apesar de ser um conto de fadas, não há natureza que socorra Rosalie, não há a típica expressividade que oferece a esperança de um fim feliz, mesmo dentro da floresta sombria. A propriedade de Abel é o reflexo de sua personalidade: de tão machucada, acanhou-se na sombra, tornou-se inexpressiva. Rosalie adiciona beleza, na forma de flores e luzes, porém não o bastante para avivar o espírito do marido. A fotografia de Christos Voudouris realça o interior da propriedade e a hostilidade do vilarejo, apelando à aparência nublada e neblinas a fim de retratar o obscurantismo de quem prega a união e o perdão, mas se apressa em julgar.
A propósito, a narrativa recorre a elementos contemporâneos a fim de evidenciar a violência a que Rosalie está submetida, a exemplo da distribuição sem autorização de fotos íntimas (ao menos considerada a época). E não há muito que a altiva e determinada, mas sozinha, Rosalie possa fazer contra o rebanho que dança a música tocada pela igreja e, em última análise, por Barcelin. Mesmo os aliados de Rosalie temem a represália do meio em que estão e evitam apoiá-la. À distância, Abel tampouco pode reagir.
Gosto do trio central de atores, ainda mais pelo roteiro não tentar forçá-los em arquétipos: Rosalie não é virginal como a típica protagonista de contos de fadas e as cicatrizes na pele revelam são reveladoras de sua autoestima; Abel, embora covarde, falho e muito longe do estereótipo do príncipe encantado, é um homem justo e honrado; e Barcelin é ilustrativo da relação inapropriada entre o capital e a religião, embora demonstre alguma vulnerabilidade.
Estes personagens são organizados no melodrama de Stéphanie Di Giusto, que derrapa no fim ao rejeitar o desfecho na forma da promessa feita por Rosalie (quem viu entenderá), em favor de uma conclusão poética, que retira Abel da inércia em que esteve a narrativa toda, e parece conduzir à ideia de que a obra é sobre ele tanto quanto ela, como A bela e a fera. E, não, Rosalie é ambas as figuras e é este encaixe que a torna a personagem vibrante que é.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes de 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.