O sul-coreano Jee-woon Kim dirigiu dois longas-metragens que, até hoje, permanecem na minha cabeça: o terror Medo (2003), que ganhou uma refilmagem americana O Mistério das Duas Irmãs (2009), e o thriller Eu Vi o Diabo (2010). E, apesar de a experiência americana do diretor ter sido decepcionante com O Último Desafio (2013), o trabalho pretérito tornou obrigatória a sessão desta comédia metalinguística Cobweb. Porém, o resultado é medíocre e acomodado.
O roteiro escrito por Shin Yeon-shick apresenta-nos a Kim (o multifacetado Song Kang-ho de Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Parasita), um cineasta de um sucesso só – o qual é atribuído ao roteiro escrito por seu mestre, Shin, que morreu durante um incêndio – e agora ostracizado pela crítica e escanteado pela produtora. Depois de filmar Cobweb, seu novo trabalho, Kim tem sonhos que o empurram de volta ao set de filmagens para duas diárias adicionais, com que pretende refilmar parte do enredo e o desfecho e refazer o filme em uma obra-prima.
Apesar de a presidente da produtora Baek (Jang Young-nam), viúva de Shin, ser contrária às refilmagens, em razão da não aprovação do roteiro modificado pelo comitê censor do governo coreano, a sua sobrinha, Mido (Jeon Yeo-been), diante da oportunidade aberta com a viagem da tia ao Japão, viabiliza o desejo de Kim. O set de filmagem é aberto e os atores são reconvocados para filmagens adicionais: Min-ja (Lim Soo-jung), agora famosa por estrelar um drama televisivo (um dorama), coloca mil obstáculos; já Ho-se (Oh Jung-se), o galã, acumula escândalos com relacionamentos extraconjugais com colegas de elenco; a e experiente Madam Oh (Park Jung-soo) mal sabe o que Kim deseja.
Comédias (ou dramas) sobre os bastidores do cinema não são tema novo: François Truffaut trouxe solenidade e realismo ao clássico Uma Noite Americana (1973), enquanto Shin’ichirô Ueda explorou a direção oposta no cômico e surreal Plano Sequência dos Mortos (2017). O fazer da arte torna-se arte, e ambos os trabalhos demonstram o amor ao cinema de forma comovente até. Em contrapartida, Cobweb permanece no meio do caminho: não é realista, embora apele ao realismo quando é conveniente retratar o estado emocional e psicológico atribulado de Kim, nem é farsesco o bastante para as alternativas tomadas pela equipe (em particular, Mido) serem engraçadas. Na realidade, somente quebram o fio de envolvimento que ainda possuía.
Cobweb finge não compreender as regras de um set de filmagens, logo recorre à ignorância do espectador que, mesmo assim, pode perceber a impossibilidade de realizar as filmagens desejadas, da forma como feitas, em só dois dias, especialmente após a chegada do comitê censor. Não que precisasse ter um compromisso com verossimilhança: Dirigindo no Escuro, de Woody Allen, tem o autor interpretando um diretor com cegueira psicossomática que, ainda assim, continua dirigindo a produção. É uma farsa e sabe disso. Entretanto, Cobweb não percebe que a ambição artística de Kim e a encenação, sobretudo a partir da metade do segundo ato, reforçam a ânsia de encontrar uma forma de validação além da comédia.
Do mesmo modo que critica o compromisso do ator adepto ao método de atuação ou a autoria ambicionada na produção de estúdio (a partir da figura do obsessivo Kim, que vez ou outra acorda com sobressaltos quando recorda Shin), Cobweb emprega o humor físico e caricato, chegando até mesmo a dopar o censor governamental. De um lado, argumenta de modo cínico, do outro, é cômico de forma tola. De um lado, é crítico à obsessão por planos sequência, do outro, bem, encena um plano sequência!
Song Kang-ho é um exemplo da inaptidão da narrativa: o ator é capaz de conferir comicidade e gravidade a qualquer personagem, vide O Motorista de Táxi, mas dentro de Cobweb, busca o personagem que não encontra, porque a seriedade de Kim sufoca o humor que associamos, até instintivamente, a seu semblante.
Mas, o que mais pesa para mim é que o filme dentro do filme parece mais interessante (até mesmo coerente com os trabalhos pretéritos do diretor) do que o filme de bastidores falsos. Estive encantado com a presença de elementos expressivos de um noir clássico, exibidos na cena inicial. Mas nada passou de um sonho.
De Kim, e também meu.
Crítica publicada para a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.