A Pixar Studios deixou de ser, há mais de uma década, o núcleo de animações visualmente impressionantes e humanamente emocionantes para se tornar a loja de ponta de estoque da Disney, com exceções que confirmam a regra e justificam o lamento. No entanto, não foi somente a aquisição pela Disney que matou a Pixar. A saída de John Lasseter e Andrew Stanton acabou com o tripé criativo do estúdio, agora centrado em Pete Docter. Para piorar, o anúncio de sequências e não de obras originais somente reforça o coro dos detratores.
(Nunca inteiramente justo).
Até porque Elementos é um aceno à Pixar de ontem – ainda que em forma de uma brisa. O roteiro de Kat Likkel, Brenda Hsueh e John Hoberg equilibra o coming of age com romance e crítica social contemporânea. Faísca nasceu na utópica Cidade Elemento – em que os elementos, água, ar e terra, vivem em harmonia. A chegada aconteceu após os pais deixarem a Terra do Fogo em consequência de um desastre natural e em busca da promessa de recomeço.

Um aceno à Pixar de ontem
Contudo, o povo do Fogo não é bem acolhido. Pelo contrário, é marginalizado em um bairro em que convive somente com os seus, alimentando pré-julgamentos, enquanto frequenta a Loja do Fogo, que Faísca “vai assumir quando estiver pronta”, uma ideia que chamuscou na infância e que faz menos sentido à medida que seus interesses amadureceram em outra direção. Criada pelo pai com as próprias mãos, a Loja do Fogo é um local de resistência e resgate cultural. Tem um valor além do monetário, mas também sentimental.
Certo dia, após uma de suas explosões (Faísca é esquentada), o encanamento da loja é avariado e ela é inundada por Gota, um elemento da água e fiscal da prefeitura com o poder de encerrar suas atividades. Isto retira Faísca do conforto do bairro em direção aos riscos da cidade. O objetivo dela é convencer Gota a não depositar o caderninho de multas na prefeitura. Em uma série de eventos, a história revive o tropo da comédia romântica – os opostos se atraem.
Gosto de como o diretor Peter Sohn, do fraquíssimo O Bom Dinossauro, brinca com a ideia americana de romance. O passeio ao cinema é frustrado, pois o brilho de Faísca é o equivalente à pessoa inconveniente que mexe no celular na poltrona da frente. Já as fotos tiradas na cabine automática têm um efeito ótico óbvio e, ao mesmo tempo, eficaz em termos de narrativa. A autoexposição da imagem ajuda manter em mistério a identidade do namorado de Faísca.

Uma comédia romântica visualmente original
Elementos não remodela a comédia romântica como Faísca faz com areia e vidro, somente joga com o gênero do modo como pode. E não tem embaraço das convenções. Em certo momento, Faísca recorda a frustração infantil de não poder ter visto a Vivistéria, a planta que é a metáfora da personagem. A partir daí, o espectador anseia pela realização do sonho em um gesto romântico à altura de suas expectativas. A recompensa está no conforto da previsibilidade e na beleza do momento, a exemplo do instante em que Faísca está literalmente refletida no interior da cabeça de Gota.
Em termos de beleza (ainda bem) a Pixar ainda é insuperável. O traço do povo do Fogo tem a aparência de ser feito artesanalmente à mão e colorido de amarelo, laranja e vermelho, além das bordas delimitadas. Isto confere ao movimento e comportamento dos personagens a sensação expressionista de imprevisibilidade natural do fogo. Já o desenho do povo da Água é contraditoriamente satisfatório: é coeso embora maleável, é denso ainda que com a impressão de poder espatifar-se, é cubista sem a parte geométrica.
Até faltou a exploração da desigualdade da Cidade Elemento, visualizada brevemente no contraste entre os arranha-céus e a periferia, e da dinâmica da sociedade utópica. Contudo, se a narrativa está recortada pelo olhar dirigido àquele mundo por Faísca – que aprendeu jovem que “Elementos não se misturam” – faz sentido que a personagem e nós não tenhamos a visão que Alegria teve ao explorar Divertida Mente, por exemplo.

Relacionamentos tóxicos
Meus problemas com Elementos estão no tratamento dado a temas importantes. A ideia de que há imigrantes socialmente desejáveis (a Água é benquista; irriga a Terra, convive bem com o Ar) e indesejáveis (o Fogo é malquisto; queima as mudas da Terra, provoca ebulição na Água) é pertinente, mas mal explorada, por dividir a responsabilidade da não assimilação de uma forma igualmente injusta. Enquanto isto, o roteiro acovarda-se até ser condescendente com o retrato da elite da Água. Gota é o water savior (agradeço ao Vitor Stefano), o rapaz cuja família rica se torna a patrona da ambição artística da moça pobre. Ao tentar remendar, o roteiro piora. A crítica se encerra em um ressentimento de Faísca – você pode fazer o que deseja fazer ou você pode viajar para curar seu coração partido – em vez de ser a verdade que é.
E, em pleno 2023, Elementos confunde o comportamento tóxico de Gota com romantismo. O início do romance flui muito bem na fase da descoberta, das experiências e das diferenças, mas é mal resolvido. Gota força Faísca a agir fora do tempo dela – no equivalente a “tirar do armário” uma pessoa que ainda não esteja pronta para isso. E, na mesma oportunidade, Gota faz com que Faísca questione-se se é ou não uma boa filha. Isto obriga o roteiro a seu pior momento e diálogo, “Você voltou depois de tudo o que eu disse”. Uma mea culpa em que Faísca responsabilizasse por não ter percebido quão bom e sensível é o parceiro dela.
Isso arruína a emoção que deveria haver na cena final, já que, em análise final, Elementos não é uma comédia romântica de os opostos se atraem apenas. É uma comédia de amadurecimento, ao estilo A Pequena Sereia, em que uma personagem descobre que a herança da família não é o dever de repetir os passos dos pais, mas de criar o nosso caminho com a brasa de amor infundida em nosso coração.
E que Elementos arruíne o peso emocional da cena final com o romance tóxico central, é imperdoável.

Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.