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Lupicínio Rodrigues – Confissões de Um Sofredor

4.5/5

Lupicínio Rodrigues - Confissões de Um Sofredor

2022

96 minutos

4.5/5

Diretor: Alfredo Manevy

Poesia documental de Alfredo Manevy rememora e faz jus um dos poetas esquecidos da MPB.

“Desde o tempo de Romeu e Julieta a música de dor de cotovelo jamais morrerá”. Essa é uma das muitas frases icônicas de Lupicínio Rodrigues que aparecem no documentário do cineasta Alfredo Manevy exibido na 18ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Lupi, como era conhecido pelos muitos amigos que fez na vida, é um compositor inserido no contexto de um Brasil de outros tempos, mas sua obra é efetivamente atemporal. Samba, futebol e boemia. Ainda que esses elementos configurem um estereótipo do que é o nosso país, é inegável que são partes representativas da alma brasileira, e Lupicínio os reunia em sua vida e em sua obra da maneira mais frontal possível.

Cazuza em outra passagem do filme define o trabalho do compositor gaúcho como “brega”, não no sentido pejorativo, mas por reconhecer justamente a frontalidade com a qual este lidava com seus temas. Não havia hermetismo, tudo em suas letras reflete aquilo que é mais epidérmico, algumas das emoções mais incontroláveis e intensas que a humanidade é capaz de sentir. A dor de cotovelo, a “cornidão”, a vingança. Temas universais, mas que são abordados de forma muito particular pela arte popular brasileira e por Lupicínio.

Manevy constrói um documentário que consegue ir além da clássica fórmula: depoimento/imagem de arquivo/cronologia linear, se propondo a escrever a partir da montagem uma poesia documental, que faz jus à grandeza do personagem. A lógica de organização do roteiro é mais do que uma simples organização cronológica dos fatos da vida de Lupicínio. O filme passeia pela obra do compositor, destacando algumas de suas músicas mais conhecidas, procurando contextualizá-las com momentos marcantes de sua vida pessoal e para isso usando sim de depoimentos e imagens de arquivo, mas procurando extrair destes algo além de um simples relato. Há na colisão entre as imagens e áudios curados pelo diretor uma busca mais profunda. Uma tentativa de aproximação da alma do artista.

Um recurso interessante utilizado nesse sentido, e que talvez tenha muito mais a ver com uma condição material do que com uma escolha criativa, é a utilização dos áudios dos depoimentos, tanto de Lupi quanto de seus parentes, amigos e pesquisadores, sem as imagens correspondentes. Isso parte de uma necessidade gerada pela existência de algumas importantes entrevistas do artista apenas em áudio, mas a conjugação desses sons com imagens que aparentemente não possuem qualquer relação direta com o que se ouve, gera o efeito poético mencionado. Em um momento específico, ouvimos uma música de Lupicínio enquanto vemos uma patinadora deslizando sobre o gelo em uma apresentação solitária de patinação artística. A imagem se integra à música, potencializando a graciosidade e a melancolia que já havia ali. É uma escolha que gera efeitos emocionais, diferente da didática que documentários mais convencionais procuram estabelecer em suas narrativas.

Ao mesmo tempo, o diretor faz questão de tratar situações que poderiam ser espinhosas de uma maneira, aí sim, didática. Em uma era em que o cancelamento é prática comum e as pautas identitárias se tornam cada vez mais parâmetros superficiais de julgamento, Lupicínio é um artista repleto de contradições que poderiam ser evocadas para diminuir o seu trabalho. Os realizadores se antecipam a essa problemática através do depoimento de artistas que fazem a devida contextualização da obra do compositor. Não se pode encarar uma obra da primeira metade do séc. XX com o olhar da segunda década do séc. XXI. Através dessas falas, entende-se que a alma humana e a obra de Lupi são muito mais complexas e profundas do que um mero julgamento descontextualizado de suas letras e algumas passagens de sua vida pessoal. Essas complexidades são justamente o que possibilitam que seu trabalho seja tão interessante e perdure até o momento.

Isso é feito, porém, sem que se “passe pano” para os vícios do artista. Há sim uma exposição de suas falhas, assim como há menções às suas lutas, como o pioneirismo na denúncia ao racismo em Porto Alegre, ou seu ativismo pelo direito dos compositores, que assim como ele, eram lesados ao terem suas canções utilizadas sem os devidos créditos.

Lupicínio teve uma vida repleta de nuances, da pobreza à indicação (não creditada) ao Oscar. Das paixões mal resolvidas a um casamento duradouro. Da boemia aos discos. Que bom que existe o cinema, para que, através de um belo filme como este, possamos ter um gostinho de quem foi esse homem e do que segue sendo sua obra. Que sejamos como os marinheiros, que na época ecoavam as canções que ouviam pelos portos do Brasil, e façamos justiça a um dos maiores nomes da nossa música para que este poeta popular não seja mais uma vez esquecido.

Filme assistido na 18ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.

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