Uma obra cinematográfica tem a capacidade de ultrapassar o limite de seu quadro, de desbravar muito além da extensão de sua película e reverberar por muito mais tempo que sua duração. Fantasma Neon acredito ser uma dessas obras que transcenderão. Sua execução é poesia e sua denúncia social é um grito afiado.
O filme expõe a realidade dos entregadores de aplicativo, seus corres, suas dores, as várias microviolências do cotidiano de suas atividades e a macroviolência de ser invisibilizado e desumanizado em um sistema econômico que os explora além do limite como a principal engrenagem que não pode parar. Enquanto o mundo do dinheiro se recusa a enxerga-los como pessoas, a câmera nos obriga a olhá-los nos olhos enquanto nos revelam seus nomes e nos contam suas histórias – que apesar de ficcionais, se espelham em vivências que se repetem entre vários desses profissionais.
A cor saturada de seus uniformes e o sorriso impresso em suas máscaras não refletem o sentimento desses indivíduos que entregam alimentos enquanto sentem fome. Oscilando entre a realidade e a fantasia, Fantasma Neon nos oferece beleza. Não para nos poupar – afinal não é a nossa carne que sangra, apesar de nossos olhos poderem chorar – mas por que não cabe mais explorar ainda mais o sofrimento desses entregadores. Dessa maneira, o filme abraça o fantástico através de um musical em que as ruas são palco desse enredo operístico.
Para além dos versos cantados, a fotografia do filme nos encanta enquanto subverte estereótipos e traz diferentes tipos de resistência. O passinho e as batidas de trap movimentam essa obra corporal. Em determinado momento, Instrumentos musicais são manuseados como armas, inclusive porque a arte possui munição infinita para todas as batalhas.
Fantasma Neon é um desbunde artístico. Se o cinema é uma arte visual, onde a mensagem deve ser vista e não falada, aqui ela é também sentida. Assistir ao curta é como observar uma tela de Basquiat ouvindo Gil Scott Heron. Não acredito que uma denúncia, notícia ou qualquer material jornalístico atinja a mesma profundidade emocional, ainda que o curta musical seja uma obra ficcional. Digo isso baseado nos diversos casos de absurdos cometidos contra essa classe trabalhadora que foram noticiados – quando são noticiados.
Fantasma Neon foi exibido na 2ª Edição do Festival de Cinema de Vassouras
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.