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Kidnapped

1.5/5

Rapito

2023

125 minutos

1.5/5

Diretor: Marco Bellocchio

O veterano diretor italiano Marco Bellocchio herdou a história de Edgardo Mortaro, o tema de Kidnapped, de Steven Spielberg. Em meados da década passada, havia sido anunciado que Spielberg e Tony Kushner (de Munique e Lincoln) adaptariam a história do garoto judeu no século XIX, sequestrado da família de oito irmãos e adotado pelo Papa Pio IX em razão de, recém nascido, ter sido batizado na fé católica pela empregada doméstica. Oscar Isaac e Mark Rylance, recém premiado com o Oscar de Ator Coadjuvante por Ponte de Espiões, estavam associados ao projeto que teve o plugue retirado da tomada. Coube à Bellocchio a função de contar essa história.

Que, como história e somente como história, é absurda e revoltante o bastante para fisgar e manter a atenção do espectador e o seu brio aquecido por 125 minutos. É óbvio que xinguei um monte (na minha cabeça) a desumanidade de padres, bispos, cardeais e Papa católicos por arrancar Edgardo da família, com o auxílio da polícia em um Estado que não tinha poder de se imiscuir em assuntos de Igreja, independentemente das feridas que isto provocou no pai (Fausto Russo Alesi), na mãe (Barbara Ronchi), no filho primogênito (Samuele Teneggi) e condicionando o retorno à casa à negação da fé judaica e conversão à fé católica. Ainda, sentia-me como torcedor de futebol, querendo gritar a cada ação atrapalhada, equivalente às notas de repúdio de hoje, que arranhava a imagem, mas não mexia no poder absoluto da igreja. A sociedade permanecia literalmente de joelhos diante da figura papal.

Contudo, apesar do sentimento provocado pela premissa e pelas reviravoltas escandalosas, tinha a nítida impressão de que sentiria do mesmo modo lendo um livro ou um artigo acerca da história. Era a história, não a encenação de Marco Bellocchio que mexia comigo, senão de maneira pontual – o rapto de Edgardo pelos canais remeteu-me a O Inferno de Dante; o contraluz e a neblina sugestivos da aproximação do mundo dos mortos, dando à travessia contorno fatalista e definitivo. No restante do tempo, o roteiro mal estruturado, escrito junto a Susanna Nicchiarelli, e as decisões equivocadas da direção diluíram o potencial dramático da história real.

A pior das decisões está no tom maniqueísta adotado por Paolo Pierobon, para interpretar o Papa Pio IX. O Papa, ou poderia apelidá-lo de Papatine, é o exemplo de vilão caricato saído das tiras dos gibis vergonhosamente animados por Bellocchio. Ele treme a pálpebra quando é contrariado, começa a suar no rosto e espumar de ódio diante da comitiva judaica e ainda precisa reafirmar-se gritando “Eu sou o Papa”. É um monstro, não um antagonista somente. Por isso, até entendo quem defenda a composição dentro da narrativa, pois não há motivo razoável para o Papa agir da forma como age e se indispor com a sociedade e até mesmo com alguns fiéis senão por ser mimado e megalomaníaco – o que é compatível com o tom e o desenvolvimento do personagem. Mas comigo não funcionou, e culminou com o momento bizarro em que tem o pesadelo de ser circuncidado. 

A propósito, parece-me incompreensível a opção de Marco Bellocchio em dar tanta ênfase ao Papa Pio IX se não sabe como empregar o personagem. Ao cair escada abaixo, depois de sofrer o que parece ser um derrame, Bellocchio quer que tenhamos empatia ou quer que acendamos a esperança de um fim positivo em razão do enfraquecimento temporário do vilão? Por que o diretor sugere, a partir do olhar de esguelha de Pio a Edgardo ou da atitude inexplicável na ponte no terceiro ato, o gérmen de um relacionamento abusivo na cobiça do olhar, se não explora este caminho investigativo?

Em contrapartida, o ator-mirim Enea Sala enxerga, nas imagens dos santos imolados, um reflexo que ainda não sabe ser o seu. A ingenuidade de Enea torna-o uma presa fácil para que seja manipulado por quem detém o poder, e ainda levado a acreditar que, se obedecer e aprender os dogmas católicos, retornará à família – o tipo de promessa vazia feita por não importa qual denominação religiosa. Essa atuação emotiva e doce é contrastada com a falta de carisma de Leonardo Maltese, que interpreta o personagem jovem-adulto. Mais sombrio, com olheiras fundas e fundamentalista, Leonardo parece ter o desejo patológico de agradar o papa (o que colabora com a pergunta retórica feita no parágrafo anterior), levando a ação a momentos embaraçosos, como aquele em que o derruba enquanto corre para beijar o seu anel.

Esses personagens, e outros com os quais estabelecemos empatia por terem perdido o filho, estão à mercê do roteiro mal estruturado, que atropela acontecimentos e exagera em elipses diluidoras do impacto dramático. Kidnapped nem parece a obra de um diretor com a história e o currículo que tem; seu maniqueísmo sensacionalista somente é rivalizado com a valorização de eventos minúsculos e a desvalorização daqueles que poderiam acrescentar, à história real naturalmente revoltante, um tecido cinematográfico à altura.

Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.

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