A memória está para o indivíduo, como os achados arqueológicos estão para a história das nações. O ato de olhar para trás é indispensável ao aprendizado de quem fomos, individual e socialmente, e para onde desejamos ir. Contudo, olhar não é permanecer. É fácil atrair-se pela ilusão que o passado representa e perder contato com as possibilidades do presente, e é esta articulação ilustrada em La Chimera. Temática e formalmente, o título é pertinente. A quimera é uma criatura mitológica híbrida entre leão, cabra e serpente, e tal hibridismo está presente no tema (passado e presente) e na forma realista mágica e cômica, dramática e romântica.
Parecido com As Maravilhas e Feliz como Lázaro, que misturavam o realismo com a magia e o encantamento, La Chimera apresenta ao espectador o inglês Arthur (Josh O’Connor, de The Crown). Vestido de um terno branco, de cabelo desgrenhado e atordoado, Arthur é liberado pela polícia e retorna à comunidade onde morava, à procura de Beniamina, o amor do passado. É a memória de um amor, cujo barbante vermelho remete à mitologia do fio de Ariadne, que auxilia Teseu a escapar do labirinto do Minotauro, ou que ajuda Arthur a escapar do labirinto do passado em que está. Ao chegar à comunidade, é recebido pela mãe de seu amor, Flora (Isabella Rossellini), por Itália (Carol Duarte, de A Vida Invisível) e também pelos tombarolis, a gangue disfuncional de ladrões de tumbas de que participava e que se aproveitam de seu dom sobrenatural de Arthur para encontrar artefatos históricos.
Retomando a temas anteriores, Alice Rohrwacher discute a ideia falsa de pertencimento que pode haver em comunidades, quando esse sentimento é fruto da exploração do dom e da bondade de um protagonista ingênuo, reforçado pelo caráter de imigrante. Mesmo Flora enxerga o genro com a esperança de que poderá restituir-lhe a filha desaparecida (“Ele está procurando-a e ele sempre acha tudo”, explica). Portanto, resta apenas Itália, uma brasileira que carrega o nome da nação, o ontem e o agora, o acolhimento e um amor às vezes correspondido por Arthur. Carol Duarte é a dança da caminhada errática de Josh O’Connor; é o olhar sensível e afetuoso contra a apatia ou o niilismo dele. Atuações complementares e que, juntas, permitem compreender, em mais uma dimensão, a quimera do título e conferem o drama à parte final da narrativa.
Uma narrativa que, no resto do tempo, está seduzida com muitas possibilidades estéticas: a comédia muda com o emprego da técnica de frame ramping, que basicamente consiste em acelerar a velocidade da imagem pela diminuição da quantidade de quadros por segundo, o musical, o romance e até a linguagem documental. Ou com o atrito que há entre o realismo e o onirismo (a cena do trem é exemplar nesse momento, mas é o formato da imagem, com a borda arredondada, que melhor descreve a sensação de vivenciar o sonho). Rohrwacher é livre em explorar as possibilidades, porque produzidas a partir do olhar de Arthur. Por isso aprecio o comprometimento de Josh O’Connor, que é uma tela em branco em que a diretora projeta ambições e inspirações artísticas. Repare na transformação do figurino dele, que vai encardindo enquanto a narrativa avança, até decidir trocá-lo. Talvez um ator mais incisivo fosse de encontro ao estilo desejado pela diretora; talvez dominasse a ação, em vez de ser dominado por ele.
E ao mesmo tempo em que La Chimera é bonito pela quantidade de experimentações que realiza, nenhuma delas gratuitamente, é também melancólico em razão de um homem cujo ofício se confunde com a sua vida. Pois se o dom de Arthur proporciona-lhe encontrar, e até vilipendiar, o passado, mantém-no aprisionado no ontem, incapaz de perceber a Itália diante de si. O desfecho narrativo é doloroso, de um lado, e esperançoso, do outro: entendemos a implicância factual, ao mesmo tempo em que percebemos a sensibilidade artística.
Uma quimera não menos.
Crítica publicada para a cobertura de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.