O cinema é um meio de contação da história e também de preservação da memória de um país. Um país sem cineastas é um país sem memória e, como disse Lúcia Murat, um país sem memória é um país sem futuro. Terra Querida entrega a reconstituição de um momento da história do Piauí e do Brasil que acredito ser pouco conhecida, principalmente por sudestinos como eu. Franklin Pires leva a Batalha do Jenipapo à grande tela contada a partir da ótica de uma família. A obra narra a luta dos piauienses para além da liberdade. É um conflito travado por pequenos agricultores, pobres e não brancos, contra a tirania dos representantes da coroa portuguesa.
Em Terra Querida, acompanhamos a família Silva e sua tentativa de sobreviver às margens do riacho Jenipapo, enquanto são constantemente ameaçados por soldados portugueses que confiscam alimentos e animais além de assediar as jovens mulheres da família. O que era suportado com resiliência se impossibilita após um evento trágico. Quando o chefe da família Silva tenta organizar as demais famílias que habitam a região para resistirem à ocupação militar portuguesa, a trajetória desse núcleo familiar se envereda por caminhos ásperos.
Centrar a narrativa nas pessoas comuns traz um envolvimento emocional à obra. Torna aquele evento mais íntimo e menos uma transposição do livro de história – apesar de não me lembrar do registro da Batalha do Jenipapo nos livros de escola. O que acaba se tornando um pouco confuso dentro da narrativa é a definição dos membros daquela família que irão definir o rumo da narrativa. De início, somos guiados pela perspectiva do pai e sua busca por proteger os seus familiares. O ponto de virada do filme envolve todo o núcleo familiar, mas é determinante para o arco dramático do pai. O ponto de não retorno, no entanto, é definidor no arco das filhas que passa ser central à narrativa. Por sua vez, olhar de duas jovens mulheres trouxe outra perspectiva – e mais interessante – ao enredo. Talvez fosse uma escolha mais acertada apresentar a história sob o olhar delas desde o início do filme. Contudo, a obra deve ser analisada pelo que ela é, não pelo que gostaríamos que ela fosse.
Terra Querida tem a intenção de nos apresentar uma obra épica. A fotografia exuberante destaca a beleza da paisagem com as silhuetas das imponentes carnaúbas interrompendo a iluminação do nascer e do pôr do sol. A imensidão do local e o isolamento daquelas pessoas é evidenciado em planos abertos que nos remetem aos faroestes de Howard Hawks e John Ford – destaque a uma cena em especial que traz uma rima visual com Rastros de Ódio. Trazendo a estética áspera, o olhar popular e a participação de atores sociais traz ao filme de Franklin Pires um quê de cinema novo. É possível ver a inspiração do diretor em obras clássicas do cinema brasileiro como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Gláuber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. (Seria interessante ver uma versão do filme em preto e branco, inclusive).
O filme Terra Querida possui um grande potencial. Sua idealização é grandiosa. O que compromete é a sua finalização. É notório que o filme não encontrou a versão final ou definitiva que o projeto merecia. Em algumas cenas podemos encontrar áudio e imagem dessincronizados, ou até mesmo o desaparecimento da faixa sonora correspondente à fala de um personagem. A ausência de tratamento da imagem também pode ser percebida quando numa mesma cena vemos diferentes tons nos mesmos elementos. Mas esses são problemas corrigidos na ilha de edição.
Quanto ao olhar do diretor, ainda falta maturidade. A obra merecia mais momentos contemplativos para que permitisse ao expectador mergulhar no sentimento de desolação. O uso excessivo de imagens aéreas de drones nas transições acaba contribuindo para esse comprometimento do ritmo. Ainda assim, existem escolhas a serem enaltecidas como o uso da câmera livre que nos faz sentir parte daquela comunidade, como na cena da comunhão com a oração. A presença dos canhões fora do campo também nos faz compartilhar do caos vivido por meros aldeões em meio a uma batalha. Nos sentimos tão desnorteados e transtornados quanto aqueles que viveram aquele momento.
Levando em conta os desafios em se fazer cinema no Brasil, ainda mais nos últimos quatro anos em que a cultura foi deixada às sombras, a existência de Terra Querida por si só já é um ato de resistência. Ainda mais quando percebemos que o projeto se desenvolveu distante dos ensejos metropolitanos e fez questão de abraçar profissionais que compartilham o mesmo espaço em que o momento histórico narrado se passa. Apesar de atropelos na execução, foi positivo assistir à Terra Querida e inteirar-me a respeito da Batalha do Jenipapo que até então desconhecia por mim. Também fico curioso a respeito das novas realizações do diretor e os resultados que ele trará à grande tela com mais experiência por trás das câmeras.
Terra Querida: O Outro Lado da Batalha do Jenipapo foi exibido na 2ª Edição do Festival de Cinema de Vassouras, no Vale do Café.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.