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Mato Seco em Chamas

4/5

Mato Seco em Chamas

2022

153 minutos

4/5

Diretor: Joana Pimenta, Adirley Queirós

Em Mato Seco em Chamas, Joana Pimenta e Adirley Queirós oferecem uma obra híbrida de documentário com ficção que escancara a realidade com a textura de uma distopia apocalíptica. Da periferia de Sol Nascente, Ceilândia, às paredes da Colmeia, prisão feminina de Brasília, acompanhamos a narrativa das Gasolineiras de Kebrada, um grupo de mulheres que usa sua própria gasolina como moeda de troca para sobreviver em um mundo rodeado de conflitos.

A história se desenvolve a partir do reencontro das irmãs Chitara (Joana Darc) e Léa (Léa Alves), consideradas lendas em seus meios. Os eventos da vida de cada uma acabou causando o afastamento das duas. Léa havia cumprido seis anos de detenção na Colmeia, onde conjugava relações com três companheiras. Chitara descobriu uma fonte de combustível em seu terreno e agora negocia com motoboys da região. Uma terceira figura completa o trio. Andréia (Andréia Vieira) é também uma ex-detenta que acompanha Chitara, mas já esbarrou com Léa durante a vida no cárcere. Enquanto compõe o grupo de gasolineiras, também é candidata à deputada distrital pelo Partido das Pessoas Presas.

Léa e Chitara / Foto: divulgação

O filme traz um empoderamento dessas mulheres. Mais que sobreviventes, elas domam a realidade ao seu redor. A força vai além da resiliência. São guerreiras modernas, Valquírias do Cerrado, onde as motocicletas substituem os cavalos, e não se acanham na hora de segurar em armas. O manejar de rifles e pistolas não deixa espaço para mãos vacilantes. A mesma firmeza pode ser sentida no olhar reflexivo e austero de quem coleciona provações. É curioso como o cenário áspero, envolto à fumaça de carburadores e cigarros, não consegue diminuir a profundidade do olhar de cada uma das protagonistas durante as cenas mais contemplativas, com diálogos que revivem memórias ou silêncios que muito tem a dizer.

Mato Seco em Chamas consegue manter um clima de paiol de pólvora prestes a explodir. A vigilância de Léa no alto da torre portando um rifle, como se estivesse defendendo uma fortaleza, seu Álamo pessoal; O cerco de motocicletas barulhentas às mulheres durante a negociação; A espreita dos drones ou os agentes armados dentro do blindado antecedendo a operação. Cada uma dessas cenas ilustra a tensão narrativo. Mas o filme também carrega uma inquietação política que extrapola o quadro enfatizada pelo toque de recolher em Sol Nascente. A alta dos preços da gasolina é também combustível para o conflito ideológico que acompanha a narrativa. Acompanhamos a trajetória de mulheres que se relacionam com mulheres, que pegam em armas, que se sujam de óleo, que dominam ambientes masculinizados e, portanto, são encaradas de maneira marginalizada por olhos conservadores. A ascensão do bolsonarismo exaltando seus valores deturpados de uma ethos hipócrita e um patriotismo canalha não é apenas sentida, como também filmada dentro daquele mesmo cenário.

A fotografia de Joana Pimenta explora a aridez do cerrado, proporcionando uma experiência cinestésica. O expectador consegue sentir o calor, da mesma maneira que sente o cheiro da fumaça e a textura do óleo. Ainda assim a fotografia não tem aquele aspecto corrosivo. Pelo contrário, é hipnotizante a forma com que a luz e as sombras conseguem dar forma a silhueta dos rostos dos personagens. E a diretora também trabalha a imagem sem precisar explorar as marcas nos rostos dessas mulheres. Ainda que fique claro que a captura da imagem foi feita de forma improvisada, é impressionante como ela converte planos em obras de arte e aproveita a expressividade, de maneira individualizada, daquelas personagens do mundo real. Até em trechos mais naturalistas, como o de Andréia na igreja, é interessante observar as expressões nos rostos daquelas mulheres.

Andréia, na fotografia de Joana Pimenta / Foto: divulgação

Por falar em realidade, a fotografia também consegue moldar o mundo real como se este tratasse se uma distopia apocalíptica – não que o cenário político que estava se construindo não pudesse ser classificado dessa forma. Os planos com fumaça e óleo, as bombas de petróleo e as perseguições com moto ao carro tático remetem à Mad Max. E Chitara, principalmente, nada deve à Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), em Mad Max: Estrada da Fúria. Vale lembrar que o nome da protagonista é o mesmo da personagem de Thundercats. Ao mesmo tempo, o cenário de conflito, a defesa do “forte” com armas também acrescenta um ar de faroeste moderno a Mato Seco em Chamas. A crítica perene ao momento político, a expectativa a uma invasão iminente e a presença de “lendas” locais também me fazem associar o filme a Bacurau, outro faroeste à brasileira.

Apesar de possuir esse caráter híbrido entre ficção e documentário, Mato Seco em Chamas não perde sua unidade. Mesmo quando a obra revela seus contratempos, no caso, o depoimento sobre a prisão de Léa, é aproveitado dentro da narrativa. O espectador não consegue se afastar da história, ainda que lhe seja revelado que esta não é mais uma ficção. Tudo se costura magistralmente dentro da narrativa. Os momentos de testemunho permitem uma maior reflexão e contemplação, principalmente onde o vazio de palavras é substituído pela verborragia de olhares. Ainda que algumas cenas se prolonguem um pouco além, as quase três horas de filme não são sentidas com pesar.

Mato Seco em Chamas foi exibido na Mostra Cinemundi, no 17 Festival Internacional de Cinema Cine BH.

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