Novo filme de Scorsese já nasce cheirando a clássico, resgatando um dos crimes mais emblemáticos da história dos Estados Unidos para analisar os fatores estruturantes de sua sociedade.
Quero começar pelo final. Duas escolhas de Scorsese no trecho derradeiro do filme me chamam a atenção. A primeira: não ilustrar o desfecho de nenhum dos personagens, apenas relatá-los através de uma espécie de “noticiário radionovelesco”. A segunda: se colocar diante das câmeras para revelar o destino de Mollie (Lily Gladstone) e apenas o dela (os demais personagens tiveram seus finais revelados por outros atores). Ambas as escolhas revelam muito sobre a obra como um todo.
A primeira posiciona o longa como uma espécie de documento ficcional sobre o acontecido. Um dos crimes mais absurdos e representativos da história dos Estados Unidos nunca possuíra um registro audiovisual digno de seu tamanho e gravidade. A triste história dos Osage se confunde com a história da formação do país e de como se deu todo o processo de colonização. O filme de Scorsese se comporta como um anti-western no que tange à figura dos povos originários norte-americanos, tão estigmatizados e vilanizados ao longo dos anos pelo mesmo cinema que o “vovô da cinefilia” agora utiliza para retratá-los com dignidade. Essa história nas mãos de Scorsese, porém, não tem uma moral final, um desfecho dramático ou simplório que ofereça qualquer satisfação – mesmo que amarga – ao espectador. Esse é um relato de um momento triste e seus personagens não precisam e não devem ser romantizados.
A segunda escolha deixa claro a partir de que ponto de vista o diretor enxerga essa história. Ao se colocar diante das câmeras para relatar como terminou a jornada de Mollie, Scorsese identifica uma perspectiva. Apesar de a personagem não ser exatamente a protagonista da narrativa, que gira em torno de Ernest (Leonardo DiCaprio), essa é a história dessa mulher interpretada de forma magnética por Lily Gladstone. Scorsese filma a atriz incansavelmente. Seu rosto, impassível em muitos momentos, torna a personagem uma espécie de Mona Lisa contemporânea. O acesso às suas emoções só vem em momentos extremos, de desespero, ou num breve diálogo entre a moça e suas irmãs. Na maior parte do tempo, Lily segura o filme com poucas palavras, na força de sua expressão e presença.
Cabe dizer que a moça funciona também como uma representação metonímica de sua comunidade. Rica e bela, mas adoecida, explorada e vilipendiada pela presença parasitária do “homem branco”. Tal como Mollie, a comunidade é envenenada aos poucos por quem diz dela cuidar. No micro, isso se dá através do personagem vivido por Leonardo DiCaprio. No macro, através de William Hale (Robert De Niro). Ambos os personagens possuem uma relação tão doentia com os objetos de suas explorações que chegam ao ponto de acreditarem que efetivamente os amam. Isso fica claro no depoimento final de Ernest, quando ele nega ter se aproximado da esposa por interesse, apesar de os fatos mostrarem o contrário. E fica claro também na carta enviada por Hale para a comunidade dos Osage após a sua prisão.
Há algo de interessante, que dialoga com a filmografia de Scorsese. Todos os seus filmes são protagonizados por homens. Sempre figuras masculinas em seus conflitos com o poder, com a violência, com o sexo, com o dinheiro. Normalmente, homens tóxicos e violentos. Raramente mulheres têm posição de destaque no cinema do realizador, não por qualquer problema que ele tenha com a figura feminina, mas por ele ter muito a dizer – e a criticar – sobre a masculinidade. “Assassinos da Lua das Flores” é um filme que não foge à regra. Estão lá os homens tóxicos e violentos em seus jogos de poder e dinheiro. Mas essa violência aqui se revela em como, não só o protagonista, mas todos os homens brancos da narrativa buscam se aproveitar das mulheres que os cercam. Há muito de político no cinema de Martin Scorsese, sempre houve. Mas este é um trabalho que dialoga muito diretamente com os tempos atuais, com as discussões que são travadas no campo da política no aqui e agora. É um filme que ilustra como se dão as relações raciais e de gênero sem precisar de nenhuma linha expositiva para tratar sobre o assunto.
Em um tempo quando tudo precisa ser verbalizado, onde cinema e política estabelecem uma relação muitas vezes pobre, baseada única e exclusivamente no texto, Scorsese escolhe apostar na força da imagem. É potente enxergar essa comunidade onde as relações sociais, de certa forma, estão “invertidas”. Ver brancos como motoristas, como babás, como comerciantes, como bandidos, como pedintes. Ver homens e mulheres de cor em posição de privilégio, pelo menos do ponto de vista financeiro. Não deixa de ser irônico, contudo, que mesmo diante de uma realidade como esta, as relações de exploração sigam o mesmo vetor habitual. Tudo isso é ainda mais potente quando se entende que o que se vê em tela é adaptado da realidade. Aconteceu. Racismo e misoginia são fatores tão estruturantes da sociedade americana que nem o poder financeiro conseguiu suplantá-los.
O velho Martin mais uma vez revela sua capacidade absurda de controlar a narrativa. Paciência na construção dos personagens e desenvolvimento dos acontecimentos. Imaginação fora do comum para vislumbrar e realizar toda a potência imagética de seu filme. Versatilidade para reinventar diversas vezes as dinâmicas narrativas de um longa de quase três horas e meia, mantendo-o interessante e coerente ao mesmo tempo. “Assassinos da Lua das Flores” é um daqueles trabalhos que já nascem cheirando a clássico. Vida longa a Scorsese.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.
1 comentário em “Assassinos da Lua das Flores”
Sensacional texto. Verei ainda nessa semana.