Seja como membro d’Os Originais do Samba ou d’Os Trapalhões, Mussum nunca será esquecido. Mas antes mesmo de ser Mussum, Antônio Carlos Bernardes Gomes foi Carlinhos da Mangueira ou Carlinhos do Reco-Reco. E, muito antes de todos esses pseudônimos, ele era apenas Carlinhos, o filho da dona Malvina. Em três linhas temporais distintas, o diretor Silvio Guindane, costura as diferentes facetas desse personagem tão querido enquanto narra sua história. Temos acesso a um pouco de sua infância sob a criação rígida e, ao mesmo tempo, amorosa de sua mãe, aos seus tempos de juventude, conjugando o serviço militar e a vida de sambista e, é claro, aos seus anos na frente da câmera, despertando sorrisos e risadas.
Na infância, somos fascinados pela inocência do menino Carlinhos (Thawan Lucas) que sonha ser jogador de futebol. Vemos sua alegria de menino e a leveza com que vive a vida pelas ruelas do Morro da Cachoeirinha, no Lins. Também nos encantamos com o brilho que desperta em seu olhar ao ouvir o canto do samba, na voz do Serjão Loroza. Ainda que sua mãe seja firme em mantê-lo longe de tudo que o distraia dos estudos, aquela seria uma batalha perdida. O samba já havia feito morada no coração e na cabeça daquele menino. Mas Carlinhos nunca deixou de lado seus estudos. Guardara os ensinamentos de Dona Malvina de que “Burro Preto tem aos montes. Mas preto burro não dá”. Em sua estada num colégio interno, sua educação se tornou também a educação de sua mãe. A escrita do nome próprio em uma folha de papel assina um dos momentos mais tocantes do filme.
Na juventude, Carlinhos (Yuri Marçal) é cabo da aeronáutica. Mas apenas de dia. À noite, se converte em Carlinhos do Reco-Reco, integrante do “Modernos do Samba” – que mais tarde seriam conhecidos como “Originais do Samba”. A vida noturna é levada às escondidas de Dona Malvina, que inclusive acredita que o instrumento de seu filho é um de seus trabalhos no serviço militar. Aqui já começa sua jornada dupla, em que procura caminhar por dois caminhos distintos. A vida inconstante de artista e a segurança da vida militar fragmentam Antônio Carlos. É como um ator que vive dois papeis no espetáculo de sua própria vida.
Aílton Graça completa a trinca de atores a interpretar o artista, agora em sua maturidade. Apesar de ser uma figura já conhecida, acompanhamos sua vida artística ser, aos poucos, desmembrada entre o samba e a comédia. Tomamos conhecimento da origem do nome que o eternizaria: “Mussum”, e por batismo do gigante Grande Otelo. Promovendo risadas e ritmos, Mussum tenta dominar o compasso de sua vida… ou vidas. Nessa fase, o filme explora um pouco da vida conjugal e das crises provenientes de sua ausência em casa. Sacrificar sua presença para oferecer conforto para os seus era sua justificativa. Apesar de seu amor genuíno por sua família, o artista não conseguia se afastar de suas paixões. Ao lado de Didi, Dedé e Zacarias, tornou-se um trapalhão. E Os Trapalhões se tornou um sucesso desenfreado. Quando não conseguiu escolher a vida que queria seguir, a vida resolver fazer essa escolha por ele. E os Originais do Samba abriram mão do Carlinhos do Reco-Reco para que ele fosse apenas Mussum.
Mussum, o personagem da TV, quase sempre era desenhado como “o bêbado”, mas o Mussum da realidade vivia como um “equilibrista”. Sempre sambando entre os papéis que amava interpretar e esticando o tempo para exercer ambas as funções. Mas apesar de ilustrar essa constante dúvida sobre quais caminhos seguir, quais papéis interpretar, o filme exalta o papel em que Antônio Carlos Bernardes Gomes merecia todos os prêmios: o de filho.
É a relação de Mussum com sua mãe que torna o filme tão especial. Nas primeiras fases, conhecemos uma Malvina que transborda amor e firmeza, a empregada doméstica que dá tudo de si para garantir aos filhos a educação que não teve oportunidade de ter. Mais velha, vemos uma mulher mais debilitada, cuja força já não é mais a mesma. Apesar disso, nada muda em seu amor. Tanto Cacau Protásio quanto Neusa Borges são potências dentro dessa narrativa. Cada uma a sua maneira chama para si o poder das cenas. Cacau nos oferece sua veia cômica nos garantindo diversas risadas. E, com pequenos gestos e olhares, nos faz marejar os olhos e permitir com que as lágrimas escorreram em momentos tão significativos em sua linha temporal. Neusa, com simplicidade e doçura, já nos oferece Dona Malvina em outro momento. A rigidez dá lugar à compreensão, sempre acolhendo seu eterno menino. As lições continuam sendo dadas, afinal, Dona Malvina tem por missão manter seu filho no caminho certo. A presença da atriz em campo amplifica o poder da interpretação de Aílton, que já está incrível. A dor da perda daquela figura que é sua maior “ídola” e também fã atravessa a tela e nos alcança nas poltronas da sala de exibição.
Diversas figuras conhecidas invadem a tela para orbitar a história de Mussum: Elza Soares, Alcione, Chico Anysio, Boni, Renato Aragão, Dedé Santana, Zacarias, Garrincha, Sargento Pincel, Grande Otelo, Jorge Ben e Cartola – esses últimos chegaram a causar choque de tão parecidos sob a interpretação de Christiano Torreão, Nando Cunha, Ícaro Silva e Flávio Bauraqui. A direção de arte e figurino do filme também merecem ser exaltados! Além de refletirem a época, trazem cores vibrantes que exponenciam o clima de alegria que o filme exige. Aliados ao trabalho de fotografia conferem um quê de realismo mágico para a narrativa. Afinal, é mágica a trajetória de sucesso daquele menino do Morro da Cachoeirinha que se eternizou na Mangueira. E é na visita à mangueira com Leny que a tela fica repleta do verde e rosa característicos da escola de samba. Os sets de gravação do programa d’Os Trapalhões imediatamente nos transportam a um lugar de nostalgia por conseguir reproduzir a mesma textura da imagem que assistíamos na TV. Os elementos cênicos e de imagem são muito bem colocados em harmonia para celebrar a vida de Mussum.
Se a imagem possui diversos elementos que se destacam aos olhos, a trilha sonora de Mussum, O Filmis também tem um papel decisivo na narrativa. As músicas dos Originais do Samba não poderia faltar. Assim como não faltaram músicas de Elza Soares, Alcione, Cartola e Jorge Ben. O samba é um personagem vivo, apesar de imaterial dentro da cinebiografia. Outra música se destacou por também estar diretamente ligada à memória do personagem: a vinheta dos trapalhões. Todas as escolhas musicais são pontuais no filme. A trilha musical original também é de grande importância para exaltar o tom dramático de algumas cenas. A carreira musical de Mussum já era sólida antes mesmo de ele receber esse nome. Dessa maneira, era impossível o filme ter esse elemento sonoro desafinado.
Apesar de todos esses elementos que funcionam com maestria dentro do filme, sob alguns aspectos, Mussum, O Filmis perde sua unidade. O protagonista é interpretado por três atores distintos: Thawan Lucas, Yuri Marçal e Aílton Graça. Quando ocorre a mudança de fase do personagem, sentimos uma abrupta mudança de tom na maneira de vivenciá-lo de seus intérpretes. É inevitável, e também compreensível, essa divisão entre Carlinhos criança e Carlinhos adulto. Mas é durante a transição entre as fases da vida adulta que essa estranheza é sentida. Individualmente, Yuri Marçal e Aílton Graça estão ótimos. Também é muito inteligente a forma com que o diretor faz essa transição através do atravessar uma porta. Mas, Yuri traz uma abordagem cômica mais caricata, como se o seu Carlinhos estivesse sempre arregalando os olhos. Ao contrário de Aílton, que oferece uma leitura mais naturalista, deixando essas “caretas” mais gráficas para os momentos em que Mussum está atuando na comédia. Apesar de impecáveis individualmente, a direção dos atores não conseguiu encontrar um meio-termo ou uma linha interpretativa que tivesse mais harmonia para ambas as fases do mesmo personagem.
Mussum, O Filmis é um acerto não apenas como uma cinebiografia, mas como uma homenagem a esse personagem icônico que marcou gerações e será eternizado na história do samba e também da televisão brasileira. Para além do ícone, ela aprofundou no homem. E, ainda que explore algumas controvérsias, ela é respeitosa com sua história. Ela consegue se aprofundar nessa questão do eterno “duplo” que Antônio Carlos Bernardes Gomes precisa interpretar, ao mesmo tempo que dá tempo de tela ao papel de filho, cujo qual vive de maneira tão dedicada e sincera. É contando com as intérpretes de sua mãe que o filme encontra suas cenas mais emocionantes e que me arrancaram lágrimas. O filme do palhaço sambista vai muito além do riso. Vai muito além daquilo que achávamos que sabíamos ao acompanhar aquela figura na TV. Mussum, O Filmis celebra o ícone e o homem e, ao mesmo tempo, vasculha nossa memória, o eterniza.
Mussum, O Filmis estreia dia 02 de novembro nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.