Uma obra literária igual a Duna, cuja envergadura e importância à ficção científica fogem ao objetivo desta crítica, parece exigir o tratamento respeitosamente solene dado por Denis Villeneuve. A tradução do universo feudal criado por Frank Herbert em imagens evocativamente cinematográficas é um dos feitos do diretor canadense – cujos A Chegada e Blade Runner 2049 pareciam, comparativamente, ser preparatórios para essa empreitada grandiloquente.
Entretanto, sabe de algo que não senti nem em Duna nem em Duna: Parte Dois, que Denis Villeneuve realmente amasse o mundo de Herbert tanto quanto o reverenciava. Parece uma pessoa que idealiza a figura amada, mas tem tanto medo de aproximar-se dela, de que o contato possa quebrar o encanto, que decide manter-se à distância. As duas partes da obra são narrativas esteticamente belíssimas – apesar de eu questionar esta fotogenia quando apreciar o clímax -, nascidas para serem vivenciadas no cinema, mas frias, insensíveis e indiferentes com os personagens criados e desenvolvidos, com os dramas elaborados, com as consequências de suas ações em uma escala individual, humana. São filmes tão ou mais estéreis do que o deserto de Arrakis, cujos elementos mais envolventes (Rebecca Ferguson no anterior; Zendaya neste) terminam obliterados por um deserto de cartão postal, mas onde não resta vida alguma.
A Parte Dois retoma os acontecimentos do anterior, introduzidos com a participação da narradora informal, a Princesa Irulan (Florence Pugh), consciente das ações do pai, o Imperador (Christopher Walken), guiado pela Reverenda-Mãe (Charlotte Rampling), e que resultaram no extermínio do clã Atreides, apesar de não dispor de poder algum senão o protesto silencioso. Aí retornamos a Arrakis, onde Paul (Timothée Chalamet) é enxergado por Stilgar (Javier Bardem) como o messias enviado para levar os Fremen aos campos verdes. Essa visão não é bem digerida pelos jovens do norte de Arrakis, na cética Chani (Zendaya), como é pelos fundamentalistas do sul, para onde viaja Jessica (Rebecca Ferguson), que explora a crença messiânica do povo por interesses próprios. Já na Casa Harkonnen, o Barão (Stellan Skarsgård) substitui o sobrinho Rabban (Dave Bautista), depois da redução na colheita da especiaria, pelo cruel e impiedoso Feyd-Rautha (Austin Butler). O cenário de guerra está montado.
De certo modo, a Parte Dois não muda em absolutamente nada o antecessor, senão em deslocar as intrigas políticas palacianas a um conflito religioso desértico, em torno da messianidade de Paul – traduzida somente na questão de aceitar a inevitável viagem ao Sul, em uma lógica profética naturalmente anticlimática. Pois, por ser messias, não há resultado que não o poder inerente à condição e a consequência dramática de abdicar do que ama (a individualidade), em prol do que acredita que o povo queira (o sacrifício pelo coletivo). Ciente disso, o roteiro de Jon Spaiths e Dennis Villeneuve explora com inteligência a relutância de Paul para, então, enxergá-lo a partir do olhar de Chani – a mais indicada a perceber as alterações do amado em um homem que não reconhece.
A força dramática da Parte Dois não está nas etapas que Paul deve superar para que seja reconhecido messias – p. ex., montar um verme de areia, não aleatoriamente o maior deles -, mas na forma com que a religião é forçada a penetrar no imaginário dos indivíduos até revelar-se a alternativa exclusiva para salvação do fardo que carregam. É muito significativo que uma das primeiras tomadas da Parte Dois inicie em um close no rosto de Paul, revelando atrás dele Chani realizando o gesto de silêncio com o dedo na boca, e, somente depois, Lady Jessica atrás dos dois, como quem orquestra todos os acontecimentos dos bastidores. Essa cena parece evidenciar o conflito entre indivíduo e messianidade diante de Paul, e a inevitabilidade de sua jornada, colocando ainda um ponto de interrogação diante do protagonista: é o herói que acreditávamos ser ou uma pessoa movida pelos próprios interesses?
É quando entram palavras conhecidas do vocabulário religioso: infiel, falso profeta ou guerra santa, a fim de destacar o papel histórico da religião na redistribuição do poder e ainda enfatizando uma relação promíscua mantida entre ambição, ganância e fé, na figura de um Salvador Branco. Contudo, embora a religião tenha sido introduzida pelos colonizadores para controlar os Fremen – alguns tratados como autênticas caricaturas, vide Stilgar, que da figura dominante do final do episódio anterior transformou-se em um alívio cômico, uma descontração a cada exclamação – e considerando que o povo é uma alegoria dos árabes, não está evidente o que Denis Villeneuve pretende afirmar no contexto atual. (Vou deixar a análise para versados em orientalismo e islamofobia).
A ênfase à religião é manifestada no estilo, que alterna entre planos abertos e épicos do majestoso e hostil cenário e planos fechados e intimistas dos personagens. O jogo entre a religião como uma forma de controle das massas, tornando grãos de areia em um deserto, e a espiritualidade como um meio de conciliar anseios, desejos e medos. Ora a direção de fotografia de Greig Fraser enquadra os maquinários que devem pesar centenas de toneladas diante de humanos minúsculos – em sequências mecanicamente encenadas, por exemplo a cena em que uma colheitadeira de especiarias é destruída -, ora aproxima-se dos rostos de Paul e Chani, mas sem que aquele romance transborde, senão pela expressão dividida de Zendaya.
A cena da montaria do verme de areia é emblemática a esse respeito, já que revela, em perspectiva próxima, o desafio físico de Paul para escalar, equilibrar-se e controlar a criatura, enquanto, a partir do olhar dos que o assistem, embargado pela tempestade de areia, a dimensão de seu feito. Esse diálogo de imagens estabelecido na encenação é análogo ao movimento político e religioso do indivíduo ao todo e deste de volta, e encontra o eco na apresentação do psicopático Feyd-Rautha no interior de uma arena a um público indistinto.
Falando nele, é uma pena que os Harkonnen sejam tão maniqueístas que o Rabban de Dave Bautista, que parece somente gritar, destaca-se positivamente por ser covarde, a despeito de seu porte físico avantajado. Austin Butler, recém saído de Elvis, investe em um olhar psicopático de baixo para cima – uma herança do olhar de Stanley Kubrick, a propósito -, mais repetitivo do que é ameaçador. Enquanto isso, Stellan Skarsgård está restrito pela maquiagem e só se apoia, sem trocadilhos, na imagem explorada no filme anterior – aliás, é impressionante a taxa de emprego dos funcionários da família dado o provável destino que lhes aguarda nas mãos de seus mestres.
A bem da verdade, o elenco de apoio é mal explorado. E se ao menos Javier Bardem pode divertir-nos, apesar de trágica a devoção alienada de Stilgar, e Josh Brolin tem carisma suficiente para caminhar pelo roteiro conveniente, não há um instante sequer para ser explorado por um ator do calibre de Christopher Walken, revelando assim a fragilidade de seu personagem. E toda essa preparação, que envolve mais do que duas horas de duração, conduz o espectador a um clímax que, similar ao antecessor, é bem anticlimático.
O clímax é uma sucessão de eventos desencontrados, sem qualquer peso emocional – vide o reencontro de dois desafetos -, que torna desinteressante o aparecimento dos vermes de areia inclusive, um momento que demanda um maior cuidado visual ou, ao menos, respeito aos critérios mais imaturos de quem somente quer assistir a criaturas gigantes destruindo o que está à sua frente. O que deveria ser apoteótico, resume-se à fotografia épica e agora nada fotogênica em razão de efeitos visuais computadorizados desinteressantes e poeira. Muita poeira.
Duna: Parte Dois é uma obra épica e fotogênica, na maior parte do tempo, e cujo tema é assertivo em relacionar a exploração e crueldade física à alienação espiritual a partir de um messias que talvez não seja a pessoa que desejávamos que fosse. Apesar disto, é falho em encontrar o indivíduo perdido no meio do deserto e, assim, também incapaz de provocar um envolvimento além de uma sensibilidade indiferente e distanciada.
O triste nisso tudo é que Duna: Parte Dois, mais do que nunca, tinha tudo para dialogar com os tempos de hoje, de falsos profetas ou de profetas verdadeiros mas que desejam só colocar os povos de joelhos.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.