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Ferrari

4/5

Ferrari

2023

131 minutos

4/5

Diretor: Michael Mann

Um melodrama italiano em alta velocidade

É um tremendo descaso que tenhamos discutido minimamente sobre o mais recente lançamento de Michael Mann, oito anos depois de lançar Hacker (2015), seu trabalho mais irregular. Eis uma biografia que poderia ocupar, com honra e mérito, a posição que Maestro usurpou, embora pareça haver uma discriminação dos votantes neste ano com melodramas – Segredos de um Escândalo também patinou nas indicações.

Em uma época repleta de cinebiografias chapa branca e superficiais, a parte mais interessante de Ferrari, a partir do roteiro escrito há décadas pelo já falecido Troy Kennedy Martin (adaptado da biografia de Brock Yates), é a recusa do diretor Michael Mann em adocicar a personalidade de Enzo Ferrari (interpretado por Adam Driver) ou contemporizar os eventos retratados na história. É um recorte bastante específico mas compreensivo, quando a Ferrari estava à beira da falência e precisava vencer a Mille Miglia de 1957 para obter um aporte financeiro robusto que equacionasse a paixão de Enzo pela alto velocidade com o comércio de automóveis. Alguns obstáculos estão no caminho: o relacionamento conflituoso com a esposa e sócia, Laura (Penélope Cruz), depois da morte do filho único do casal, o romance extraconjugal com Lina (Shailene Woodley), que é também mãe de um filho de Enzo, um acidente fatal durante um teste de velocidade e os problemas financeiros acarretados pela promiscuidade patrimonial entre o lado pessoal e profissional de Enzo.

A direção não pede a identificação ou sensibilização do espectador com os dilemas de Enzo – que não poderiam estar mais distanciados do nosso – e explora as chances para tentar revelá-lo como um sujeito mulherengo e mesquinho. Com exceção das lágrimas copiosas no túmulo do filho, Enzo é uma espécie de enigma enquadrado de lado, ou de costas, ou de frente, mas de óculos que escondem a sua alma. O amor pela velocidade e pelas mulheres parece defini-lo, em uma reflexão entre a pulsão pelo sexo e pela morte – já que, no mundo da alta velocidade daquela época, em que os carros aceleravam por estradas, avenidas e ruas repleta de “alvos” vivos, os pilotos não tinham a mínima segurança no interior de bombas-relógio prestes a detonar com o menor erro em uma curva e a proteção que havia era um amontado de blocos de feno.

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A insensibilidade de Enzo depois da morte de um piloto – substituindo-o de maneira imediata pelo entusiasmado e jovial Alfonso De Portago (Gabriel Leone) – é derivado de uma relação niilista intelectual entre um piloto e um soldado enviado para lutar na 2ª Guerra Mundial. Ao entrar em um carro, um contrato é assinado com sangue e não é à toa que os pilotos, antes de partirem à Mille Miglia, deixam cartas de despedida a suas companheiras. A morte é uma possibilidade palpável. E o apelido dado a Enzo de Saturno, a partir da obra marcante de Goya, é coerente: o Commendatore alimenta-se do desejo por adrenalina dos pilotos. A similaridade da disputa com a Maserati acena à máfia, e é refletida de tal modo por Michael Mann.

Enquanto no mundo da alta velocidade, Enzo desfila como rei, dentro de casa, é Laura detém a mão forte. Além de controlar as finanças da sociedade e praticar um controle emocional do ex-marido, ela exerce seu poder dentro da lógica formal narrativa. Ainda que Penélope Cruz atravesse a narrativa como uma mortalha humana, parecendo que mal acabou de enxugar as lágrimas do luto e do adultério, e considerando a sociedade patriarcal italiana, é Laura quem orquestra e viabiliza, nos bastidores, a volta por cima da Ferrari. A narrativa é afortunada por Penélope ter encontrado os momentos entre a contenção – ex. dentro da cripta onde está o corpo do filho – e a explosão emocional. O que acentua a intensidade da atuação de Penélope Cruz é a ênfase da direção rumo ao melodrama, que viabiliza, ex., o instante em que Laura dispara sua arma contra Enzo e a admissão da mãe, Adalgisa (Daniela Piperno): “Morreu o filho errado”, sem nenhum remorso na frase. A propósito, Laura e Adalgisa detestam-se, mas comungam o fato de terem perdido filhos, e os olhares de uma encontram-se com os da outra com beleza e melancolia.

Por que Saturno devorou seus filhos? - Arte até Você
Saturno devorando um filho, de Goya

A Ópera é um artifício até óbvio, embora eficaz, para pontuar o melodrama. Por outro lado, os flashbacks me incomodaram; são intrometidos e contraditórios com a ideia e imagem formada de Enzo. Parecem acenar ao espectador que, no passado, Enzo havia sido um marido amoroso e um pai gentil. Este flashback solar soma-se com o instante em que, na troca de farpas entre Enzo e Laura, esta irracionalmente o responsabiliza pela morte do filho de uma doença para a qual buscou os melhores médicos. Na toada, Enzo desponta como um homem injustiçado, e Michael Mann costura a ideia de que o personagem que havíamos conhecido é o resultado da perda do filho e, portanto, o seu arco dramático só estaria aperfeiçoado quando abraçasse a perda.

Melhor quando Michael Mann explora o domínio que tem da encenação: quando Enzo está dentro da cripta, parece equivocar-se na decupagem (vou falar mais disso amanhã), quando na realidade ilustra uma desorientação emocional que desestrutura até regras básicas do cinema. Só uma pessoa ingênua imaginaria que um mestre igual é o diretor poderia quebrar regras inadvertidamente. A desenvoltura da montagem que articula a comunhão dentro da Igreja e a tomada de tempo, reunida pelo som de um tique-taque de cronômetro, ou então a inesperada cena final, que constrói um autêntico cenário de guerra – assim, relacionando estreitamente a história da Itália nos anos passados com a da Ferrari, um patrimônio do país, tal como reconhece o presidente da Fiat – exibem o talento de um diretor octogenário ciente da imprevisibilidade do esporte que encena.

Além do esporte, está a figura de um homem falho, a princípio mal escalado (Adam Driver é um californiano de 40 anos interpretando um italiano no auge dos 50 anos), embora bastem 5 minutos para que a objeção se dissipe. Um homem questionável e, às vezes, intragável, mas cuja paixão e ambição pelo esporte acende uma chama difícil de ser apagada. Uma chama incandescente igual ao fogo, inflamável igual à gasolina, e vermelha igual a Ferrari.

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