Alguns filmes constroem uma relação fragilíssima com o espectador que, a qualquer momento, pode romper por um mau desenvolvimento no roteiro, uma má escolha da direção e o mais antigo dos males: a insensibilidade criativa. É o que ocorre com Gloria!, que homenageia as compositoras e musicistas italianas, silenciadas e apagadas da história, a partir da história de Teresa (Galatéa Bellugi), ou ‘A Muda’, uma espécie de gata borralheira responsável pela limpeza e demais afazeres domésticos de uma paróquia veneziana chefiada pelo padre Perlina (Paolo Rossi, sim, eu confundi com o jogador de futebol), também regente de uma orquestra de jovens mulheres. Vítima de abusos e ofensas diárias, Teresa escapa da realidade através da imaginação musical, e com este recurso, as atividades diárias transformam-se em um musical clássico hollywoodiano.
Dois acontecimentos alteram o cotidiano da paróquia: a iminente visita do Papa, razão pela qual o padre Perlina está preparando uma composição a pedido do Governador – mesmo diante de um bloqueio criativo -, e também a chegada de um pianoforte, um instrumento musical doado e abandonado no porão e encontrado por Teresa. Ela passa o tempo livre sonhando e dedilhando o instrumento, até ser descoberta por um quarteto da orquestra de Perlina, liderado por Lucia (Carlotta Gamba), que deposita, em um pedido de casamento, a esperança de deixar aquele lugar de uma vez por todas. Juntas, as mulheres alimentam a criatividade artística e aprendem sobre os traumas, umas das outras – a partir de um lugar-comum da vivência e esperança femininas -, embora Teresa e Lucia mantenham um relacionamento irregular, de altos e baixos.
É razoável que seja assim, porque Gloria! explora uma opressão hierárquica contagiante – que muito parece com a igreja que critica: Perlina é intimado pelo Governador a preparar a composição, mesmo que tenha problemas criativos e pessoais que o impedem de fazê-lo; Perlina desconta esta frustração em Lucia, a primeira violinista, e em Teresa, a qual já está habituado a humilhar; por sua vez, Lucia destila a insegurança e expectativa em Teresa. Esse ciclo de opressão, para a diretora e corroteirista Margherita Vicario, alimenta a infelicidade que somente pode ser derrotada a partir da harmonia de instrumentos inusitados (e pessoas idem). Harmonia que é um ato de rebeldia dentro da tapeçaria da narrativa, quando nem deveria sê-lo, já que é a base da música de orquestra.
Contudo, Gloria! é esquemático e clichê, não de forma escusável. Cada virada do roteiro funciona em uma estrutura artificial, previsível e frustrante, que mais parece obra de um ChatGPT que consolidou dramas, conflitos e resoluções do que uma intenção humana apta a provocar uma reação emocional no espectador. Não é preciso conhecer a tabuada para perceber que a promessa do príncipe encantado não irá se concretizar como deseja Lucia, ou para antecipar o momento em que Teresa surpreenderá a todos ao pronunciar suas primeiras palavras. Se a trama – as ações, causas e consequências que impelem a narrativa adiante -, é apenas um exercício de antecipação por parte do espectador, os personagens, e inclusive a protagonista, também não apresentam volume senão um ou outro atributo ou talento que os definem.
Essa superficialidade pode, ainda, acarretar uma má interpretação do espectador, especialmente na maneira com que aborda o relacionamento entre Perlina e Cristiano (Vincenzo Crea). Perlina tem um amor platônico, não concretizado (não ilustrativamente), e por conta dele, assume as dívidas após as súplicas teatralmente dramatizadas, de joelhos, do rapaz interesseiro. É até possível argumentar que Perlina é uma vítima da mesma igreja, pois o dogma e os preconceitos impedem-no de ser a pessoa plena que deveria ser. No entanto, não é difícil sugerir um ângulo homofóbico da narrativa em relação aos personagens homossexuais: antagonistas, descartáveis, unidimensionais.
Além disso, por mais que aprecie a ideia contida da transgressão final, segundo parâmetros frouxos de conto de fadas, Margherita Vicario encena infantilmente um momento que deveria ser catártico em uma narrativa em que temas seríissimos são trazidos à tona sem um aprofundamento que merecem – abuso, suicídio, exploração. Gloria! é até bonitinho temática e superficialmente, mas defender valores dignos não o torna, automaticamente, em um bom filme.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.