La Cocina é inspirada na peça teatral de Arnold Wesker, assim como são / foram The Bear e Pegando Fogo, e relaciona o caos típico de uma cozinha de restaurante – ao menos, na forma como o cinema tem apresentado para nós – com a trajetória de Estela (Anna Diaz), uma imigrante mexicana recém chegada a Nova York com o desejo de trabalhar no The Grill ao lado de Pedro (Raúl Briones Carmona), o protagonista da obra. Pedro é apaixonado por Julia (Rooney Mara), que está grávida e pretende abortar.
Apesar de os personagens terem posições contrárias e Pedro tentar dissuadi-la – afinal, o filho pode ser o que necessita para conquistar a cidadania -, o custo do procedimento pode ser o motivo do desfalque de cerca de 800 dólares do caixa na noite anterior, a investigação ignitória do fogo da trama, mas longe de defini-la. Na realidade, a narrativa é uma crítica à sociedade contemporânea capitalista, reproduzida com a imaturidade de um universitário esbaforindo sua raiva e escrevendo seu trabalho de conclusão de curso como se estivesse descobrindo a roda. Neste sentido, a direção de Alonso Ruizpalacios é repleta de mal-estar e inconformismo, uma energia que pode impulsionar a arte, embora esteja mal direcionada e aplicada dentro de um arcabouço didático e expositivo.
O que é radicalmente contrário à forma da imagem preto e branco, com uma aparência espectral e fantasmagórica, até em razão da sequência inicial, cuja taxa de quadros ajustada (através de uma técnica chamada frame ramping) dá a impressão de estar em um sonho animado, concluído com as imagens de pássaros que voam livres em um céu sem fronteiras. Esta é uma das boas, mas escassas decisões da direção, que, no restante do tempo, investe em planos tacanhas, igual àquele em que objetifica e enquadra um dos administradores do restaurante na altura da cintura, justo no instante em que assediava uma mulher durante uma entrevista de emprego.
Essa apatia criativa está presente no uniforme listrado das garçonetes, e ainda que alguém possa argumentar que o motivo é por estarem dentro da prisão capitalista, essa conclusão é óbvia o bastante que não precisa de ênfase. Bastavam a origem dos personagens principais – mexicanos que sonham com o estilo de vida americano – os já citados pássaros ou mesmo a Estátua da Liberdade que ornamenta o aquário onde são colocadas as lagostas, com as pinças amarradas – uma imagem ilustrativa o bastante para dispensar maiores explicações. Aliás, é intrigante reparar que os personagens são enxergados à distância, atrás de objetos que redefinem e estreitam a dimensão da imagem original (portas, paredes e cortinas), ou de superfícies transparentes (ainda que sujas) e translúcidas, desumanizando-os em, repito, espectros ou fantasmas, mas também em closes desconfortavelmente próximos a ponto de obrigar o espectador a reconhecer aqueles trabalhadores invisibilizados na cozinha.
Ainda que goste dessa decupagem e da decisão de retratar o almoço no The Grill através de planos-sequências muito bem coreografados, que reforçam a ansiedade e o imediatismo com o auxílio da edição sonora agoniante (até agora estou escutando o som da impressora que repassa os pedidos à cozinha ou aquele característico de detector de metais durante um interrogatório), para que a narrativa funcione, La Cocina depende do protagonista, um sujeito agressivo, abusivo e cuja dor não é razão para ser babaca.
Diferentemente de Nonz (Motell Foster), que admite estar revendo o julgamento imediato, não dá para passar pano à violência psicológica dele contra Julia – acentuada ao empurrá-la contra a parede e impor-se esmurrando com força a cabeça ou a parede. O peso emocional no fato de o personagem “ter que chorar em inglês” e na acusação que paira sobre si – feita pela trama e também por nós – não ganham simpatia do espectador diante das ocasiões em que sua atitude é questionável. Ser imigrante, injustiçado e oprimido pelo sistema capitalista atenua, mas não elimina a incivilidade com os pares, a desobediência, o egoísmo.
“Um pouco de humanidade não faria nada mal”, reflete Estela enquanto a imagem retoma a espectralidade inicial. Não faria nada mal se Pedro fosse menos animalesco, mais humano. O comportamento bestial dele nada advoga em favor do indivíduo nem da alegoria coletiva. Apenas reforça que, toda e qualquer pessoa submetida àquele estresse, tem um momento de ruptura. Isto sabemos, e conhecer qual que é o de Pedro não é o suficiente quando nem temos identificação nem empatia com o personagem.
Dentro da cozinha taylorista de La Cocina, em que todos têm uma função bem definida, a de Pedro deveria ser o fogo que impulsiona modificações dentro daquele ecossistema. Mas quando você empatiza com todos os personagens e não com o protagonista, talvez esteja algo errado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “La Cocina”
Cara, onde você conseguiu assistir esse filme? Não o encontro em lugar algum
Will, eu assisti no festival de Berlim desse ano. (Tem até no fim do post, rs).