Contém spoilers!
Bruno Dumont é dono de um estilo peculiarmente austero e equilibrado entre naturalismo e formalismo, e é possível notar sua assinatura na cena introdutória, um plano aberto de uma praia no qual uma mulher, a uma distância que a miniaturiza, toma banho de sol no meio do nada, aos arredores de uma vila de pescadores, local onde nasce uma criança especial que pode ser capaz de desestabilizar as forças interplanetárias.
É isso aí que você leu, L’Empire é uma espécie de paródia cristã às avessas – Jony, o protagonista, é pescador, a profissão do apóstolo Pedro – misturada com Star Wars, não somente em razão de remissões visuais óbvias o bastante para dispensar maiores comentários, como na alegoria fascista contida no clássico de George Lucas. Então faz sentido que Dumont escolha o formato de paródia para criticar o movimento neofascista contemporâneo, cuja truculência é diretamente proporcional à sua estupidez. Se há um jeito de incomodar esse tipo de gente não é apontando sua hipocrisia, pois orgulhosos dela, nem a falta de noção de realidade, pois afirmam a plenos pulmões preferirem não ser informados do que serem desinformados, mas rindo da cara deles, mostrando-lhes quão estúpidos são.
Desse modo, L’Empire aproveita o elenco majoritariamente não-profissional como forma de remeter às pessoas comuns, seduzidas pelo discurso populista e pela desinformação diária. Ao mesmo tempo, esse mesmo elenco evidencia a passividade e conivência institucional: a dupla de policiais que investiga uma decapitação remete à dupla C3PO e R2D2, porém sem a inteligência deste. Já o formato das espaçonaves é inspirado nas construções religiosas, em uma sugestão da cumplicidade eclesiástica com regimes de exceção. Mas não apenas as instituições, até mesmo os heróis comungam com os vilões, seja através de seus valores (Rudy não vê a hora de empunhar seu sabre de luz), seja sexualmente (Jony é o interesse romântico de Line e Jane, e se é inspirado em Pedro, também há aí uma crítica à castidade do catolicismo).
Dá para analisar L’Empire em termos alegóricos, mas a melhor forma de curtir é acolhendo a paródia e a falta de limite ao absurdo, o ridículo. Chega até a ser perigosamente ofensivo; vide os serviçais de Belzebu, todos cobertos dos pés à cabeça de preto, abrindo margem a quem queira apontar, não erroneamente, a um disfarçado ‘blackface’. Por outro lado, curto a ideia de atores renomados franceses embarcarem na maluquice de Dumont sem filtros nem embaraços. Fabrice Luchini, cuja expressão tradicional é levemente exagerada, encara com seriedade os diálogos de guerra e dominação mundial. Isto faz todo o sentido, considerando o que afirmei no segundo parágrafo e os figurinos mais similares aos de um bobo da corte do que ao de um imperador do mal. Já Camille Cottin encabeça as forças da luz, num papel que não se apresenta tão apetitoso.
Entretanto, é a mão de Bruno Dumont, cujos recentes France: Sob os Holofotes e Joana D’Arc não alcançaram o mesmo patamar de seus melhores trabalhos, que é sentida em um controle de tempo, espaço, forma e narrativa que é admirável. Ele trabalha a expectativa e a surpresa – eu queria ter visto a minha reação após o acidente de carro e a decapitação de uma personagem -, balanceia a forma austera e a atuação amadora e dessensibilizada, que inevitavelmente confere uma seriedade aos diálogos, com a paródia, o ridículo, o absurdo, e não tem nenhum senão ao fazê-lo. E ainda é apto em trabalhar uma escala épica – em razão do formato panorâmico da imagem e com auxílio de efeitos visuais computadorizados – no interior de um microcosmos que não poderia ser mais insignificante dentro do contexto ilustrado.
É divertido que L’Empire dispute a competição de Berlim ‘contra’, por exemplo, La Cocina, um drama social sobre a condição do imigrante na sociedade capitalista e neoliberal, From Hilde, With Love, um drama histórico ambientado na segunda guerra mundial, My Favourite Cake, uma dramédia romântica politicamente engajada, ou A Different Man e Another End, ficções-científicas que exploram questões éticas na arte e na ciência. Dentre todos esses citados, talvez seja o mais original e autêntico, pois livre para ser o que deseja ser. Não é o que mais gostei, mas é memorável à sua própria maneira.
Certamente, não esquecerei do Star Wars de Bruno Dumont.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.