Muitas ficções-científicas dramatizaram a condição humana em face ao universo (in)finito, ajudaram a dimensionar a existência, o jubilo e o trauma diante de um espaço-tempo imensurável e que jamais compreenderemos, e não ousaram propor respostas, apenas fizeram mais perguntas. A constatação, de certo modo, é a de que o indivíduo é um universo em si e a odisseia no espaço é só um meio de fuga do ego e da realidade. Até hoje e talvez para sempre, 2001: Uma Odisseia no Espaço ou Solaris exploram a natureza e o comportamento humano diante de presenças inimagináveis; Interestelar e Ad Astra, apesar de falhos, expuseram as contradições inerentes à humanidade que apela à ciência a fuga do sofrimento; Lunar e Gravidade trataram da solidão (ou solitude) do indivíduo diante de uma situação em que somente podem contar com as próprias forças.
Enfim, há uma tradição de ficções-científicas espaciais da qual O Astronauta não será lembrado nem como nota de rodapé. E nem dá para culpar Adam Sandler por isso. A narrativa de Johan Renck (da ótima minissérie Chernobyl) bebe de tantas influências para extrair o pior que poderia de uma história mal contada sobre o astronauta checo, Jakub, em expedição à Júpiter para investigar uma anomalia que pode conter a explicação sobre a origem do universo. Jakub deixa sozinha na Terra a esposa grávida Lenka (Carey Mulligan), e agora enfrenta a iminência da separação, que ajuda a revelar sua personalidade egoísta. Enquanto a equipe na Terra tenta impedir que Jakub receba uma transmissão de Lenka que pode desestabilizá-lo emocionalmente – mais do que já está -, o astronauta é ‘visitado’ por uma criatura com a aparência de uma aranha gigante e a voz de Paul Dano.
Depois de um plano-detalhe de uma foto de Billy Madison de meia idade e um esforço monolítico de suspensão de descrença para acreditar que um cara igual a Adam Sandler seja a pessoa indicada a ser enviada ao espaço, Johan Renck aproveita cada micro oportunidade para sabotar o envolvimento e imersão do espectador e devolvê-lo a estaca zero. Ok, Adam é o cara mais solitário do mundo, está caminhando em um planeta desolado dentro de um traje espacial e movimenta-se no interior de uma espaçonave flutuando igual nos acostumamos com os filmes, embora com uma relativa dificuldade a ponto de conferir maior credibilidade. Aí o diretor corta a um plano médio de Adam Sandler usando as camisetas e bermudas folgadas que seus personagens utilizam em comédias, e toda a magia tem que recomeçar.
Explico: é possível aceitar Adam como o joalheiro apostador e trambiqueiro de Joias Brutas, ou o homem emocionalmente imaturo de Embriagado de Amor ou o pai de família depressivo e viciado em pornografia de Homens, Mulheres e Filhos. O papel de um diretor de elenco – profissão que está em voga com o anúncio da premiação no Oscar – é encaixar um ator num personagem, e tais escalações foram ótimas porque exploraram o alcance dramático do ator dentro das limitações que possui. Mas um astronauta? Quer dizer, o único astronauta enviado a uma missão bilionária ao espaço? Ainda por cima da República Checa? Não, ou se for fazê-lo, tem-se que saber o tempo e valor de cada decisão artística: maquiagem, penteados, figurinos, humor voluntário – por exemplo, a pasta de avelã – até a inflexão de voz quando Jakub, do jeito mais Adam Sandler de ser, grita: “Hanush, segure-se, estou indo”.
Era para ser um momento dramático, mas se torna um momento de humor involuntário. É culpa do ator? De certo modo, mas é aí que entra o diretor, dá um tapa nas costas dele e diz algo como “Muito bom, agora vamos tentar com menos intensidade”. Curiosamente, surpreendi-me comigo mesmo ao não sentir o impulso de sorrir no momento em que Jakub e Hanush abraçam-se (só vendo para crer).
Contudo, os problemas de O Astronauta são muito maiores do que esses. Não é spoiler pontuar que a jornada e o encontro de terceiro grau são metáforas do egoísmo e da terapia necessária para essa conclusão, e é um clichê machista, no cinema, que personagens do sexo masculino precisem dessas aventuras maiores do que a vida para descobrir o quão têm sido babacas com suas companheiras. A da vez é Carey Mulligan, cujo talento dramático, por maior que seja, não é apto a superar a limitação e convencionalidade da personagem. Os momentos com Lena Olin e Isabella Rossellini até reforçam elementos interessantes, logo rejeitados pela direção, dedicada a ser um cupido romântico do casal – mesmo que a separação pareça a melhor solução. Os flashbacks embaraçosos, com uma lente que deforma o passado e o distancia ainda mais do presente, não foram capazes de me fazer acreditar no afeto e romantismo de quando eram jovens adultos esperançosos – olhe que até Adam Sandler e Jennifer Aniston é um casal que deu para engolir dentro do mundo da comédia.
Além do mais, ainda que acreditasse, como levar a sério uma ‘terapia’ com mensagens de efeito tipo: “tudo que começa tem que terminar”, “você acha que essa missão vai expiar os pecados de seu pai? Foque-se nos vivos, é você que é um pai agora!”. Como de praxe, um homem de meia idade igual a Jakub é quem deve amadurecer para alcançar o estágio de maturidade da esposa. Já deu. E o pior é que a narrativa até tem boas ideias. Há um momento, talvez o meu favorito, em que Jakub enxerga o rosto de Lenka na palma da mão aberta. Ao fechar os dedos, porém, não é possível enxergar nada. A ideia de libertar a esposa de um relacionamento não saudável e devolvê-la a identidade é expressa em um símbolo que não quica de lá para cá chamando nossa atenção.
Pena que O Astronauta raramente caminhe nessa direção. O resto do tempo é uma viagem espacial em direção ao ego, que irá produzir um meio mundo de vídeos “final explicado” no YouTube, embora, na prática, o término seja absurdamente contraditório com a jornada, devolvendo Jakub ao egoísmo sem nem percebê-lo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.