Sons é um estudo da personagem Eva (Sidse Babett Knudsen), uma guarda prisional diante de um dilema quando o assassino de um ente querido, Mikkel (Sebastian Bull), é transferido para o presídio onde trabalha. Isto provoca uma mudança no comportamento ético da personagem, que regride a um revanchismo, inicialmente infantil, mas que paulatinamente escala em consequências imprevisíveis.
Falei ético, quando na realidade queria afirmar que Eva é uma espécie de Madre Teresa de Calcutá, já que o roteiro, no primeiro ato, transforma-a em uma personagem artificialmente bondosa: não só é cortês com os presos, dando-lhes bom dia, conhece-os pelo nome, ajuda um destes matemática para a prova de escola e ainda encontra tempo para encontros de meditação, no qual ensina a respeito do controle de raiva.
O roteiro de Gustav Möller e Emil Nygaard Albertsen pinta um retrato bom demais para ser verdade, até Mikkel forçá-la a pedir a transferência para a ala de segurança máxima. É quando Eva começa, a princípio, com uma série de malvadezas: não repassar os cigarros a que Mikkel tem direito; negar-lhe papel higiênico; até os eventos escalarem além do controle da personagem. Eva tem direito a sentir o sentimento de vingança, todos temos, mas o ato propriamente dito e a unilateralidade da justiça são tão proibidos quanto inesperadas são suas consequências, já que Eva é incapaz de antever qual o rumo que a história tomará.
Curto o tema debatido mais do que a forma com que é debatido, pois o roteiro parece ter sido escrito para realçar o estilo da direção de Möller e não o contrário. ‘Furos’ de roteiro não costumam me tirar do meu momento cinema, mas Sons irritou-me profundamente. Como acreditar que, dentro de um presídio de um país dito de primeiro mundo, ninguém ia se preocupar em conferir qual a relação que poderia haver entre Eva e Mikkel a partir de uma análise, que não exige muito, de quem é a vítima do crime que o levou à prisão? A confiança de Eva na impunidade é absurda que sequer se importa se as câmeras do estabelecimento registraram o momento em que ‘plantou’ provas falsas contra Mikkel – a propósito, se a narrativa reproduziu a imagem de arquivo de uma câmera, então abre um espaço para esse tipo de questionamento. O roteiro piora ainda mais a partir da metade, quando Eva precisa realizar determinadas ações que jamais passariam despercebidas dentro de um ambiente controlado, ainda mais de segurança máxima.
Cinema é audiovisual, não texto, mas há limite para tudo, e Gustav Möller subjugou de modo tapado, eu diria, o roteiro para encaixar na proposta estilística que adota. Pelo menos, esta é eficiente para que o espectador aprecie o drama da protagonista por permanecer muito próximo a ela – em closes rentes a seu rosto – e por compartilhar o seu olhar. Não muito diferente do que seu trabalho anterior, o indicado ao Oscar Culpa, Möller emprega um estilo claustrofóbico, em que o confinamento prisional é também o confinamento imagético de Eva. Ela não deixa o presídio e, quando o faz, é em razão do trabalho, para acompanhar um preso. Ela está tão presa quanto os demais presos, e é a decupagem de Möller quem torna isso evidente.
O elenco valoriza o trabalho de direção, e mitiga o roteiro fraquíssimo: Sidse Babett Knudsen oculta o mistério e a crueldade de Eva ao se eleger a carrasca de Mikkel que, a seu tempo, lembrou-me um Joaquin Phoenix escandinavo. Apesar de não curtir a expressão tensa e os punhos cerrados sempre que está contrariado – menos uma boa composição, mais um estereótipo -, o olhar de Sebastian Bull me convenceu tanto da violência e do ressentimento de Mikkel, quanto do desespero. A história não redime Mikkel, nem o humaniza expressivamente, embora evidencie que até criminosos iguais a este têm direito a ser tratados com o mínimo de humanidade. Além da dupla central, Dar Salim está muito bem no papel do chefe de ala. É um ator iraquiano que me agradou quando tive a oportunidade de conhecê-lo em O Pacto, de Guy Ritchie, e que chama a atenção pela maneira com que exerce a sua liderança e, depois, com que demonstra lealdade a Eva.
Uma lealdade que a protagonista não demonstra em relação a seus valores, em um drama prisional e revanchista eficaz, mas que mereceria um roteiro melhor, um roteiro que não deboche da nossa inteligência.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.