Veronika Franz e Severin Fiala, dos ótimos Boa Noite, Mamãe! e de O Chalé, revivem a discussão a respeito do fundamentalismo religioso e das consequências deste em uma comunidade alemã no meio do século 18, mais especificamente na protagonista Agnes, no horror folclórico (folk horror) The Devil’s Bath. A cena inicial já prepara ao tom sufocante da narrativa quando um bebê chorando perto da floresta – remeteu-me a A Bruxa de Robert Eggers, terror congênere tratando de temas similares – é tomado nos braços pela mãe e tem um amuleto pendurado no rosto antes de ser jogado de uma queda d’água para a morte. A mãe, friamente, bate à porta das autoridades e confessa o assassinato apenado com a pena de morte por decapitação.
Uma parte do corpo da mulher, o dedo especificamente, é dado de presente a Agnes (Anja Plaschg) por ocasião de seu casamento com Wolf (David Scheid). A cerimônia festiva é ‘agressiva’ de formas que somente o olhar contemporâneo pode notar com clareza: um lenço é colocado sobre o cabelo de Agnes; um avental, amarrado ao redor de seu corpo; e um bebê de pano, colocado no seu colo. A gritos de comemoração, Agnes é desumanizada e apresentada à comunidade pelo que espera dela: uma mãe recatada e dona de casa. A brutalidade dos costumes e tradições que muito tentam manter em nome da religião não requer, necessariamente, a violência física, e basta notar na forma como a sogra cobra-lhe um comportamento condizente, humilhando-a por uma série de fatores que envolve, mais importante, a saúde mental.
Após a noite de núpcias e em razão da pressão social, a saúde mental de Agnes, cujo nome significa Anjo em latim, deteriora a olhos vistos. Com dificuldade de orientação para se deslocar de volta à sua casa, Agnes perambula pela floresta enevoada e opressiva, bem fotografada por Martin Gschlacht. O local onde está a mulher do início da narrativa torna-se um autêntico altar onde Agnes presta culto. E a edição sonora amplifica o desconforto, apenas para que a trilha sonora anacrônica de Soap & Skin atrapalhe a construção da atmosfera. A composição eletrônica pode ajudar a deslocar os eventos aos dias de hoje e, assim, mostrar que o que acontecia antes permanece regra, mas de outra forma, termina por fabricar uma sensação de distanciamento prejudicial para uma narrativa que parece exigir a identificação do espectador ou, ao menos, a empatia com uma personagem cujas ações escalam de maneira inesperada.
Mesmo porque o hoje já está evidenciado no roteiro, diante da repetição de diálogos análogos a “Isto é coisa de satanás” e “Deus seja louvado”. Cada frase parece ser pontuada por um aspecto religioso que anula a agência e responsabilidade individual, por bem ou mal. Assim, Deus, diabo ou pecado são termos banalizados no vocabulário local, a ponto de perderem o sentido. A violência religiosa não é apenas em vida, na alienção e imposição de um comportamento desejado, mas até em morte, em face à recusa do pároco local de enterrar o corpo de uma pessoa que cometeu suicídio.
A medicina é tão ruim quanto a religião. Se é incapaz de cuidar da saúde física – em certo momento, um fio é introduzido no alto das costas de Agnes para que manuseie como forma de tratamento -, a medicina tampouco está apta a lidar com a saúde mental da protagonista. Esta bola de neve escala em um roteiro construído para que a alternativa de salvação de Agnes seja exatamente aquela que realiza no ato final. Um em que a pressão social sobre a mulher, o fundamentalismo religioso e a falta de tratamentos psíquicos convergem em ações imperdoáveis e, doentiamente, justificadas.
Entretanto, o que esperar de uma comunidade que literalmente bebe o sangue dos mortos num júbilo celebratório à luz de uma tragédia? Com pessoas iguais a essa, a reação de Agnes em certo instante é somente o resultado esperado após séculos de alienação, ignorância e ‘violências’ corporais, mas especialmente psíquicas e, por que não, espirituais. Em vez de perdão ou redenção, The Devil’s Bath é uma viagem ao purgatório chamado terra.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.