Se minha memória não falha, o poeta e filósofo espanhol George Santayana escreveu que ‘Aqueles que esquecem o passado estão fadados a repeti-lo’ (ou uma versão desta frase). É que a memória ensina, é máquina do tempo rumo à nostalgia e é aquela unha encravada que teima em doer sempre que tateada. A memória é lembrança material, é criação, é ensaio do que poderia ser. Joel Barrish e Clementine aprenderam, para após esquecer, acerca da importância da memória na ficção científica romântico depressiva Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, e ainda que Evidências do Amor não trilhe os mesmos passos da obra estrelada por Jim Carrey e Kate Winslet, é cativante o bastante para propor reflexões assertivas sobre as memórias.
Marco Antônio (Fábio Porchat) é um desenvolvedor de aplicativos que conhece Laura (Sandy) em um karaokê, cantando em dueto Evidências do Amor, um clássico da música brasileira composto por José Augusto e eternizado na voz de Chitãozinho e Xororó. A partir daí, parecem a tampa e a panela. Inseparáveis, apaixonados, até não mais depois de Laura abandonar Marco Antônio às vésperas do casamento. É o que basta para que o moço entre numa fossa daquelas, do tipo que nem 365 dias bastam para devolver-lhe o ânimo. Até entrar em jogo a fantasia inexplicável, que transforma o mero ato de play da canção numa máquina do tempo que o leva ao passado, a um momento específico e doloroso, no qual tem a oportunidade de aprender que, talvez, não tenha sido perfeito quanto pensava que tinha sido.
O roteiro trabalhado por Pedro Antônio, que também dirige, Fábio Porchat, Luanna Guimarães e Álvaro Campos não diverge muito do que Charlie Kaufman discutiu em Brilho Eterno: a viagem através das memórias de um personagem codependente e com falhas no relacionamento que, à primeira vista, até parecem imperceptíveis, apesar de, no grande jogo, minarem o relacionamento da mesma forma que uma música repetida mil vezes arruína nossa paciência. (Ok, não foi das mais felizes comparações). Marco não é um sujeito ruim, é apenas um que acredita demasiadamente na imagem de bom moço que criou para si e de destruidora de corações de Laura, agora ex. Ele é incapaz de realizar uma autoanálise para reparar quantas vezes negligenciou o relacionamento em razão do egoísmo, medo e de não escutar os sinais. Mas agora irá ouvi-los, em alto e bom som. A escolha da audição como veículo de transporte ao passado conversa com muita gente que viaja no tempo quando ouve aquela canção preferida na adolescência e com a narrativa, e proporciona momentos criativos de uma espécie de sufocamento da memória (já que Evidências é ouvida milhares de vezes por dia).
Viajar no tempo lembrou-me de outra comédia romântica que curto muito, O Homem do Futuro, com Wagner Moura e Alinne Moraes, pela incapacidade de Marco mudar o passado, ainda que possa atuar ativamente dentro da lembrança. É onde Marco parece Joel Barrish, pois pode reviver o passado e enxergar o que realizou de errado, mas não pode alterar o presente, apenas aprender. O fato de rememorar momentos ruins, e não os bons, obriga-o a questionar se a memória é um local de acolhimento e conforto, se é um local para onde deseja regressar e reviver os momentos espontâneos que só o amor (não exclusivamente romântico) proporciona. O roteiro é inteligente em trabalhar este conceito próprio de viagem no tempo sob outros ângulos, e proporcionar situações em que, o que parecia ser uma maldição, torna-se uma benção.
A direção tenta manter a qualidade da premissa e do desenvolvimento da história: na viagem no tempo, Marco é praticamente um ponteiro de um relógio movimentado de maneira brusca e inesperada. Além do mais, algumas lembranças remetem, ainda que acidentalmente, ao caráter cíclico do tempo, por exemplo o carrossel à distância, num momento de muita riqueza estilística. Em contrapartida, a infiltração no apartamento de Marco é um símbolo bastante óbvio para aquilo que está invisivelmente danificado e só revela os sintomas quando o dano está instaurado (embora seja reparável). Aliás, o pessimismo de Brilho Eterno – em que o aprendizado é apagado pela teimosia e o falso conceito de felicidade em esquecer – não encontra o eco no manifestamente otimista Evidências do Amor, pois mesmo que Marco não reate o romance com Laura, aprendeu o suficiente para se tornar uma pessoa melhor.
Quem parece ter esquecido é Fábio Porchat que, na maior parte da narrativa, é Fábio Porchat, não Marco Antônio. Isto fez diferença para mim. A sensação é de que Fábio tentava encaixar sua persona em Marco Antônio do jeito que desse, e não o contrário: permitir que o personagem falasse através dele. Bom humor é sempre bem-vindo, só que do jeito certo e o melhor exemplo e a atuação maior do mundo de Evelyn Castro. Entretanto, a mesma decisão não funciona do mesmo jeito com Marco, que, em parte do tempo, precisa expressa mágoa e tristeza perdidas em meio ao jeito histriônico de Porchat. Já Sandy aposta num menos é mais, e acerta na escolha, apoiando-se ainda em uma mudança de visual que é bastante eficaz para revelar como está fugindo de quem era ou, melhor, encontrou a Laura que é hoje em dia.
Uma premissa interessante e bem desenvolvida é um início promissor, e Evidências do Amor ainda acrescenta a direção competente de Pedro Antônio e o estilo fantástico de um jeito descontraído. E, ainda que a cena pós créditos seja descartável e prejudique a adorável dúvida que havia sido plantada, o comprometimento da equação romântica na figura de Porchat minimiza, mas não elimina os acertos de uma comédia romântica agradável e gostosinha.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.