“A salvação é para quem quer ser salvo”
O horror é um gênero que permite se enveredar pelo universo do fantástico para discutir questões naturais. O descolamento da realidade é um artifício narrativo que confere ao autor possibilidades outras para expressar, por exemplo, dores e traumas de seus personagens. Para além, é possível criar associações que extrapolam o que é mostrado em tela, agregando significados baseados no repertório do espectador. Nesse caso, a cultura pode ser um elemento basilar para a compreensão do significado de uma mensagem em sua totalidade. Para que o sentido da obra não escape, o autor também pode escolher inspirar-se em obras literárias mundialmente conhecidas.
Abraço de Mãe incorpora elementos do mito de Cthulhu extraídos das obras de H.P. Lovecraft. O monstro abissal que habita o subterrâneo. Porém, enquanto o autor americano aponta para o cosmos para escapar da racionalidade e existencialismo antropocêntrico, o diretor argentino Christian Ponce utiliza do sobrenatural para olhar para dentro do indivíduo. O filme concentra seu olhar sobre Ana (Marjorie Estiano), uma bombeira que havia sido afastada das operações após um ataque de pânico em seu último resgate. Abraço de Mãe se divide em duas épocas: um pequeno recorte temporal da infância da bombeira e seu retorno à ativa durante um temporal que vitimou diversas pessoas no Rio de Janeiro, no ano de 1996.
A trama, apesar de voltada para uma seita, diz muito a respeito de introspecção e olhar para dentro. Talvez um aceno à depressão e outros sofrimentos psicológicos. Logo no arco da infância, a ida para um parque de diversões faz com que a menina Ana sinta curiosidade a respeito de uma atração específica. A viagem para o interior de uma boneca gigante a partir da boca, além de sugerir uma figura devoradora de almas, é um convite ao olhar para dentro. Se deparar com um ser sendo gestado, para além de uma profecia, pode ser visto como algo crescente no âmago. Haja vista o evento catastrófico que vai marcar a pele e as memórias da protagonista, todo o processo de estresse pós-traumático é evidenciado na narrativa.
É curioso que o episódio mais marcante da vida de uma bombeira seja justamente um incêndio em sua infância, assim como sua paralisia durante um chamado seja um gatilho acionado que remeta aquele mesmo acontecimento do passado. É como se um lacre fosse violado. A personagem de Marjorie traz o discurso de estar pronta para a reintegração e da aprovação na avaliação psicológica como se não tivessem questões eclodindo. Como sintoma, a visão de uma mãe já falecida. Até o ferimento no pé pode ser uma metáfora para algo espinhoso que insiste em cutucá-la ou até feri-la.
O chamado ao asilo revela uma sequência de elementos sobrenaturais que também podem ser vislumbradas como analogias ao estado psicológico da personagem. O retorno a um espaço da infância para um local descolado da realidade já remete á um estado de transe quase hipnótico. Os internos, idosos sem qualquer identidade, como sombras e as estruturas se rachando remetem às figuras da memória e a própria psiquê comprometida. Ainda que os elementos de terror estejam evidenciados em forma de uma seita, todo teor sobrenatural implica em uma experiência psicológica. Afinal, a casa acaba se tornando um personagem que aprisiona aquela equipe. Até a figura monstruosa que se esconde nas profundezas daquele espaço, utiliza de tentáculos para capturar suas presas. Aqui, o momento em que se livra do fundo das águas e dos tentáculos que a aprisionam é como se livrasse do peso dos traumas do passado. Até o abandonar aquela casa em ruínas pode ser lido como uma metáfora, onde é preciso deixar o peso do passado para trás enquanto este não desmorona sobre você.
Da mesma maneira que a boneca gigante é um convite ao olhar para dentro de si, a presença de uma garotinha, também aprisionada naquele mundo é um outro aceno a necessidade de cura de Ana. Lia (Maria Volpe) é um duplo de Ana. Um retorno à sua infância e a sensação de abandono maternal, e uma oportunidade de libertação. O querer salvar a menina é um esforço de também salvar a si.
A seita ao monstro subterrâneo traz um elemento clássico ao horror contemporâneo de Ponce. Explorar aquele espaço obscuro, sabendo explorar tanto os jump scares quanto a tensão gerada pelo medo do desconhecido e amplificada pela intensidade da chuva e o comportamento suspeito daquelas pessoas permite com que o espectador fique hipnotizado com a trama enquanto também se perde naquele labirinto.
A direção de arte do filme e os efeitos sonoros são de grande importância para a trama. Desde a construção da atração da boneca no parque, até a forma com que utiliza do asilo para desenvolver a segunda parte de sua narrativa mostram um domínio estético apurado para dar forma a narrativa. Muito daquele universo que o filme constrói remete aos filmes americanos dos anos 80 e a Strange Things. A fotografia, o uso de luzes vermelhas e a textura dada aos tentáculos remetem ao mundo invertido controlado por Vecna. Apesar de visualmente bem construído, soa um tanto genérico. Assim como o não se aprofundar nas questões psicológicas de Ana, enquanto final girl, deixa um retrogosto amargo de algo que não alcançou seu potencial.
Abraço de Mãe foi exibido no 26º Festival do Rio e está disponível na Netflix.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.
5 comentários em “Abraço de Mãe”
O criador da história, sabendo o que quer contar, e o que vai usar para isso, entende o filme.
Nós, que vamos apenas assistir, desejamos entender claramente a história , e , principalmente, ver um fim na história.
O fim pode ser até triste mas tem que vir se forma fácil de entendimento. Afinal, estamos falando de entretenimento.
Neste filme, precisamos recorrer a uma leitura que explica o filme.
Entendo a frustração de não ter um entendimento objetivo sobre a trama. Mas é interessante se atentar às sensações que o filme te provocou. As vezes a melhor experiência está em sentir ao invés de compreender.
Na última cena em que o tentáculo prende a perna dela , achei-o parecido com cordão umbilical , o qual ela, cortando-o, simboliza sua libertação do trauma do passado .
Ótima análise, Denise!
O filme é uma tremenda porcaria, trazem um argentino para dirigir o filme achando que por causa disso iria ser uma qcoisa boa e no fim é mais um besteirol brasileiro, ele não é nenhum Carlos Hugo Christensen e deveria ter mostrado que tudo era fruto da imaginação da personagem, devido ao trauma de infância. Mais uma vez entrei bem vendo um filme brasileiro, mas garanto que vai fazer sucesso no hospício e manicômio e deverá ser um forte candidato ao prêmio Framboesa de ouro.